Depressão, ansiedade e transtorno bipolar fazem parte de uma ampla variedade de transtornos mentais que afetam cada vez mais pessoas em todo o mundo. De acordo com um levantamento feito pela Organização Mundial de Saúde (OMS), quase 1 bilhão de pessoas viviam com transtorno mental em 2019. A importância de cuidar da saúde mental tem sido disseminada de maneira crescente, especialmente com os impactos causados pela pandemia em escala global. Com o aumento de discussões sobre saúde mental no setor privado, o mesmo deve ocorrer no Terceiro Setor.
Líderes de cinco das principais organizações sem fins lucrativos dos Estados Unidos têm feito uma campanha para incentivar empresas e organizações sociais do país a assumirem o compromisso de priorizar a saúde mental dos funcionários. A campanha pede que os empregadores se esforcem para mudar a cultura organizacional, abordando o estigma da saúde mental e adotando práticas e políticas essenciais para o bem-estar da equipe.
No Brasil, ainda não existe uma iniciativa semelhante, mas o cenário de sobrecarga no Terceiro Setor permanece, principalmente com a limitação de recursos para novas contratações. “O trabalho que os funcionários do Terceiro Setor realizam lida com situações de vulnerabilidade social e é importante difundir a saúde mental e o bem-estar não só em empresas, mas também para pessoas que atuam com essas questões. Temos que olhar e humanizar o público e os funcionários que atendem esse público em vez de invisibilizar funcionários e prestadores de serviços”, ressalta a psicóloga Marina Drumond, supervisora de Capacitação e Inserção Laboral na Associação Voluntários para o Serviço Internacional Brasil (AVSI Brasil) e voluntária da Casa Flores, organização dedicada a (res)socialização de mulheres que viveram a experiência do cárcere e suas famílias.
“Mesmo com as limitações de verba, se não encontrarmos soluções eficientes para respaldar a equipe das ONGs, a saúde mental é afetada em curto, médio e longo prazo. A rotatividade interna também aumenta, o que prejudica o atendimento aos beneficiados pelas organizações”, complementa. Marina explica que o primeiro passo para priorizar o bem-estar da equipe é mudar a cultura organizacional e elaborar um planejamento que tenha um olhar humanizado para cada membro da instituição: “Se uma ONG não possui um olhar humanizado para seus funcionários, não conseguirá aplicar isso na prática porque irá apagar incêndios. É importante ter um planejamento estratégico que inclua momentos de autocuidado com seus funcionários”.
A equipe de captação de recursos das organizações possui vários desafios: lidar com a rejeição, cumprir metas e saber que a continuidade do trabalho das instituições depende, em grande parte, do êxito do seu trabalho. Há muitos caminhos para criar um ambiente acolhedor para captadores, mas é preciso ter uma boa comunicação com a equipe. O diálogo é uma ótima ferramenta para que os funcionários das organizações apontem suas necessidades e proponham soluções.
Os gestores também devem estimular o conhecimento sobre o tema e o aperfeiçoamento dos funcionários por meio de capacitações como palestras e workshops e práticas de autoconhecimento como técnicas de respiração e ginástica laboral. É interessante promover atividades de autocuidado e atividades externas e buscar propostas internas. Muitas vezes, a equipe pode ter conhecimento sobre técnicas de respiração e inteligência emocional e compartilhar isso internamente.
A flexibilidade é outro ponto igualmente relevante para repensar a lógica de trabalho atual. Isso significa analisar o escopo de tarefas e encontrar alternativas para flexibilização nos horários e no modelo de trabalho, que pode ser home office ou híbrido caso exista a possibilidade. Criar uma ouvidoria interna dentro da organização também pode ser muito eficaz para o bem-estar no ambiente de trabalho. Os captadores podem realizar comentários e dar feedbacks até mesmo anonimamente através de um formulário virtual.
Outras alternativas citadas por Marina são: implementação de atendimento psicológico por meio do plano de saúde, realização de parcerias com prestadoras de serviços por valores sociais, criação de grupos de afinidade e comitês internos em diferentes temáticas, estímulo de benchmarking com outras organizações e compartilhamento de pautas de autocuidado com funcionários sobre assuntos como exercícios físicos e alimentação.
O cuidado de si e do outro é um dos pilares do Instituto Procomum, organização da sociedade civil que atua para construir um mundo que respeite, proteja e defenda os bens comuns (seja na natureza, na economia, na ciência, na educação, na tecnologia ou na cultura). A organização já teve vários projetos relacionados a práticas de cuidado, como um centro cultural para propor atividades que abarcam desde massagens e acupuntura até espaços de diálogo.
“Temos uma agenda política muito clara, acreditamos que o mundo, do jeito que está, não produz bem-estar, saúde, igualdade e dignidade para as pessoas. Toda a nossa ação é voltada para o fato de como criamos condições para que as pessoas possam ter uma vida digna, partindo do pressuposto de um bem-estar que não tem a ver com o consumo e com dinheiro apenas, mas com o bem-viver. Estar em comunidade, poder exercer sua criatividade, ter direitos básicos. Todo nosso olhar é para dar suporte e apoio às tecnologias sociais que as pessoas da cidade civil desenvolvem e o cuidado perpassa tudo isso, desde a nossa própria equipe. Não dá para falar de justiça social e igualdade sem falar de saúde mental e como que a gente olha para isso”, esclarece Georgia Nicolau, co-fundadora e diretora de parcerias do Instituto Procomum.
Segundo Marília Guarita, diretora de Recursos do Instituto Procomum, isso envolve questionar as relações de trabalho e a lógica da produtividade. “Isso é uma luta nossa e que mantemos há sete anos. O horário de trabalho da equipe é de 30 horas semanais e não 40 horas, como na maioria dos lugares, porque entendemos que uma pessoa que trabalha oito horas por dia não consegue cuidar da casa, da família, dormir e cuidar de si. Acreditamos também que o cuidado da saúde mental está na possibilidade de a pessoa ser tudo aquilo que pode ser. Ela não é só aquela profissional que se apresenta para a instituição. É importante que ela tenha espaço para poder tocar tambor, dançar, estudar. Um dos grandes temas que precisa ser olhado para discutir o modelo de sociedade que queremos é a questão do tempo, que deveria ser o nosso grande orixá, mas virou nosso grande opressor. Mudar essas métricas e premissas que nem paramos para olhar é uma grande ação”.
O Instituto também realiza uma supervisão institucional com um psicólogo uma vez por mês e possui uma parceria com a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) para receber estagiários de psicologia que atuam em seus projetos e aprendem a usar seus conhecimentos em espaços comunitários. Em breve, a organização também contará com o acompanhamento de uma consultoria na parte de assistência social.
Uma das metodologias desenvolvidas pelo Instituto e que é compartilhada com outras instituições é o Pique Lab, cuja proposta é oferecer um tempo de respiro para ativistas por meio de uma imersão de cinco dias em um ambiente só para eles. O objetivo é fortalecer as relações interpessoais e construir redes de confiança e solidariedade para zelar por pessoas que dedicam suas vidas a causas sociais.
O Pique Lab proporciona dinâmicas coletivas de organização e colaboração, contato com a natureza, comida farta, festas, jogos, atividades de dança, rodas de conversa e escuta e medicina integrativa. Tudo é pensado para ampliar a rede de cuidados dos participantes. “Não entendemos o cuidado para fora da questão coletiva. Trabalhar a questão relacional é o cuidado em que acreditamos. O fortalecimento dos laços interpessoais contribui para cuidar da saúde mental das pessoas. Temos que pensar em como podemos mudar a maneira como nos relacionamos com o trabalho. Há ONGs que oferecem uma verba extra para o autocuidado, que pode ser usado para pagar a terapia ou fazer massagens ou qualquer outra coisa relacionada ao bem-estar. Isso também é bem interessante”, aponta Georgia.
“Outra coisa é o básico: prestar atenção à carga horária de reuniões, ao intensivo de redes sociais para o trabalho, tentar delimitar quando começa e termina o trabalho. Acima de tudo, achamos importante conversar sobre isso e investir para que a equipe estude e desenvolva processos nesse sentido. Fazemos muitas formações ligadas a Comunicação Não violenta e sobre como a gente se comunica. Para você poder trabalhar bem com as pessoas, é o seu lado pessoal, são suas emoções, não tem como deixar isso de fora”, conclui.
Texto publicado pela Captamos, editoria da ABCR de conteúdos aprofundados sobre mobilização de recursos para causas