No mês do Dia Internacional da Mulher, é importante direcionar atenção para questões que afetam mulheres em diferentes esferas da sociedade. No universo da captação de recursos para o Terceiro Setor, a desigualdade de gênero e o assédio contra as profissionais da área ainda é um tema pouco difundido, mas que vem ganhando destaque nos últimos anos com a difusão de pesquisas e projetos. Nessa perspectiva, conversamos com Ana Flavia Godoi, consultora, associada da ABCR, uma das líderes do GT Indivíduos e fundadora do Conexão Captadoras, uma iniciativa que visa criar um espaço seguro e de fortalecimento para mulheres que atuam na captação de recursos.
Ana Flavia compartilhou experiências que a impulsionaram a fundar o Conexão Captadoras. Sua trajetória na captação de recursos começou ainda na faculdade de Produção Cultural, em que se destacava pelo talento em construir relacionamentos e fechar negócios. “Eu sempre era aquela pessoa, uma das poucas pessoas, que tinha um tino meio comercial, aquela que gostava de fazer contatos e relacionamentos”, revelou Ana Flavia. No entanto, suas habilidades frequentemente eram associadas a estereótipos prejudiciais sobre mulheres, como a ideia de que ela obtinha sucesso por ser “sedutora”. Essas críticas, baseadas na aparência física e em estereótipos de gênero, marcaram o início de sua jornada na captação de recursos.
“Há um peso muito grande sobre a aparência física das mulheres e como a gente se comporta”, destacou Ana Flavia. Essa luta constante contra estereótipos e preconceitos foi uma das motivações que a levaram a criar um ambiente em que mulheres captadoras pudessem encontrar apoio, compreensão e fortalecimento mútuo, o Conexão Captadoras.
“A iniciativa surgiu de uma necessidade de um espaço de troca entre amigas, num primeiro momento, sobre as dificuldades e angústias que a gente estava vivendo no início da pandemia”, compartilhou Ana Flavia. O Conexão Captadoras virou um espaço privilegiado para as captadoras discutirem não apenas estratégias técnicas, mas também desafios pessoais.
A partir das experiências pessoais e por meio de relatos de outras captadoras, Ana Flavia enfatiza que as mulheres frequentemente enfrentam situações de discriminação no ambiente de trabalho da captação de recursos, um reflexo do que ainda acontece em outros setores da sociedade. Um exemplo comum é o chamado “mansplaining”, termo usado para descrever situações em que um homem explica algo de maneira condescendente para uma mulher, geralmente sobre um tópico em que ela tem conhecimento igual ou superior. Sugere uma dinâmica na qual os homens, consciente ou inconscientemente, assumem que as mulheres não entendem de um assunto tanto quanto eles e, por isso, precisam de explicação.
Mas há espaço também para o assédio. Durante o lançamento da pesquisa Saúde Mental de Profissionais de Captação de Recursos, Rodrigo Alvarez, um dos organizadores do estudo, compartilhou o relato de uma das captadoras entrevistadas em que afirmava que sua chefia sugeriu que ela colocasse uma minissaia para aprovar conseguir um projeto que estava “empacado” e que também deveria marcar uma conversa com o cliente após o expediente.
Em 2018, o caso da instituição britânica Presidents Club ganhou repercussão mundial depois que uma repórter do jornal Financial Times revelou que as recepcionistas do jantar de angariação de recursos, exclusivo para homens, foram vítimas de assédio. Toques, comentários inapropriados e até convites insistentes para se encontrarem com os convidados em quartos aconteciam durante o evento. A instituição fechou depois da denúncia.
“As organizações do setor social têm um discurso alinhado com a transformação social e o impacto positivo na comunidade. No entanto, a coerência entre esse discurso e as práticas internas, especialmente no que diz respeito ao tratamento das mulheres, precisa de mais coerência. Essa coerência não apenas fortalece a imagem da organização perante seus colaboradores e beneficiários, mas também contribui para a construção de um ambiente mais ético, justo e respeitoso”, reflete Ana Flavia.
Um dos passos para mudar esse cenário de desigualdade de gênero é a implementação de códigos de conduta que abordem diretamente assédio, discriminação e outras formas de violência no ambiente de trabalho. Além disso, Ana Flavia menciona a colaboração com organizações de direitos das mulheres, destacando a importância de parcerias estratégicas para fortalecer ainda mais as ações de combate ao assédio e ao sexismo. A conexão com entidades que já atuam nesse campo oferece a oportunidade de compartilhar boas práticas, recursos e expandir a conscientização.
“Além de existir um espaço seguro para a gente se proteger, trocar experiências entre nós mulheres, eu acho que as organizações devem reproduzir os espaços de ouvidoria, tal como algumas empresas possuem atualmente, para oferecer um espaço de escuta e dar mais segurança para as mulheres no ambiente de trabalho”, sugere Ana Flavia.
No contexto internacional, já existem estudos e materiais de apoio à equidade de gênero na captação de recursos. Em 2017, o think tank independente de captação de recursos Rogare lançou o projeto Gender issues in fundraising (Questões de Gênero na Captação de Recursos, em tradução livre). A Fase 1 do projeto focou na construção de uma base de conhecimento. Na Fase 2, foi desenvolvido um roteiro identificando problemas na profissão e recomendando soluções.
A Rogare recomenda que os financiadores incentivem a equidade de gênero na liderança e na remuneração das instituições sociais, reduzindo o apoio para aquelas com estruturas desiguais, exceto as que focam em gênero devido à missão. A inclusão de Diversidade, Equidade e Inclusão em avaliações de instituições aumentaria a visibilidade das questões de gênero, afetando doações e incentivando esforços para alcançar maior equidade.
A consultoria também destaca a necessidade de reconhecer e abordar o assédio sexual por doadores contra captadoras de recursos, recomendando a implementação de políticas explícitas para reduzir a probabilidade de ocorrência. Sugere ainda um Código de Conduta do Doador para promover relações respeitosas e éticas entre doadores e arrecadadores de fundos, enfatizando o tratamento profissional, a não discriminação e o compromisso de não usar seu poder para ganho pessoal.
Inspirado nas recomendações da Rogare e em parceria com os responsáveis pelo Think Tank, o Conexão Captadoras criará mecanismos para implantar os três níveis, além de lançar uma pesquisa e um código de conduta adaptados à realidade brasileira. Esse material servirá de base para as organizações se posicionarem com diretrizes claras e promoverem um ambiente mais seguro para as mulheres. “Provavelmente em abril a gente vai trazer os resultados que a pesquisa da Rogare gerou lá fora e trouxe como recomendações. Depois a gente vai rodar a nossa pesquisa usando o mesmo formulário que a Rogare usou, com as devidas adaptações para a nossa realidade”, explica Ana Flavia.
Eventos e encontros sobre temas relacionados à equidade de gênero, saúde mental e outras questões voltadas às mulheres captadoras também serão realizados pelo Conexão Captadoras. Em parceria com a ABCR, a iniciativa está incluindo questões de gênero e diversidade no próximo Censo ABCR, para gerar dados mais específicos sobre o tema.
Texto publicado pela Captamos, editoria da ABCR de conteúdos aprofundados sobre mobilização de recursos para causas