A primeira vez que ouvi falar em Terceiro Setor foi em 1996. Lembro bem, foi um amigo de faculdade que falou sobre o tema numa palestra. De lá pra cá (mais de 20 anos!), muita coisa mudou: a internet se popularizou, ninguém mais usa CD, o Brasil viveu vários ciclos de euforia e crise, tivemos e abandonamos contas no Yahoo, no ZipNet e no Orkut. Mas uma coisa não mudou: o discurso sobre a necessidade de profissionalizar o Terceiro Setor. E é comum ouvir isso também quando pensamos especificamente na área de captação de recursos – mais profissionalismo, por favor.
Não há dúvidas de que o setor cresceu e se organizou mais nessas décadas: o número de ONGs aumentou expressivamente, mais gente vê no setor uma possibilidade de fazer carreira e algumas práticas excessivamente amadoras e na base da boa vontade são consideradas inaceitáveis hoje em dia. Ainda assim, não é raro ler que o setor ainda precisa se profissionalizar. Mas o que esse clichê quer dizer, afinal?
Uma pergunta, duas respostas
Há dois jeitos de entender essa recomendação. A primeira é o sentido que a maioria das pessoas tem em mente ao falar em profissionalização. Ser profissional equivale a trabalhar com seriedade, organização, comprometimento. Um trabalho profissional é um trabalho bem feito, bem executado, que segue padrões e tem sistemas claros de planejamento, execução, acompanhamento e melhoria. Assim, uma organização de terceiro setor que se profissionalizou seria a que tem uma boa gestão, que não conta apenas com voluntários, que tem indicadores, metas, sistemas, procedimentos, padrão de qualidade etc.
No entanto, há um segundo sentido para a palavra profissional – mais ligada à sua raiz, profissão (ou categoria profissional). Esse conceito, em geral estudado por ramos da sociologia, tem a ver com a ideia de que profissional é aquela pessoa que exerce uma profissão específica. As mais tradicionais em nossa sociedade são advocacia, medicina e engenharia, e todas têm uma característica importante: apenas os profissionais com formação na área podem praticar esse tipo de trabalho (essa exclusividade é até garantida em lei, em nosso país).
Os estudiosos dizem que uma profissão se consolida quando se combinam alguns fatores:
– um conjunto de conhecimentos e práticas profissionais tidos como específicos;
– uma comunidade de praticantes que se reconhecem como parte dessa categoria profissional;
– um conjunto de valores sobre o que é certo ou errado a fazer, geralmente explicitados em um código de ética.
Profissão: captador de recursos
Assim, uma das formas de se responder se o campo da captação de recursos se profissionalizou é questionar: já é possível pensar no captador de recursos enquanto categoria profissional? No Brasil de hoje, vários elementos indicam que sim.
1) Formação específica
Cada vez mais aparecem cursos sobre captação de recursos. E estes crescem não só em quantidade, mas também em diversidade. 20 anos atrás, praticamente só existiam cursos “generalistas” – o que é captação de recursos. Hoje, há muitos que tratam de temas cada vez mais específicos – captação com indivíduos, captação de grandes doadores, desenvolvimento de um departamento, mobilização face-to-face, crowdfunding etc. Há uma afirmação implícita nessa multidão de cursos: é preciso uma formação cada vez mais específica e especializada para ser um bom profissional de captação.
2) Comunidades formais e informais
A existência e crescimento da ABCR, o nascimento da Captamos e a proposta do Certificado de Captador de Recursos são todos indicadores de que existe, sim, uma comunidade de pessoas que se reconhecem como captadores de recursos e promovem essa profissão. Ao fazê-lo, buscam se legitimar e defender sua importância para as organizações da sociedade civil.
3) Valores e Código de ética
Finalmente, começam a aparecer cada vez mais discussões sobre os valores que devem guiar a prática de captação de recursos e como lidar com desafios e dilemas éticos que surgem na profissão. A própria ABCR tem como uma de suas primeiras realizações a criação de um Código de Ética para o captador (não conhece? Leia já!). No FIFE de 2016 fiz a mediação de uma mesa muito interessante discutindo esses aspectos, contando com João Paulo Vergueiro (ABCR) e Suellen Moreira (Sociat Consultoria) como debatedores. Falou-se de tudo: remuneração de captadores, conflitos de interesse, competição pelos doadores… É também sinal de que o campo amadurece e se discute mais abertamente o que é ético ou não em sua prática.
Assim, é cada vez mais possível falar na existência de uma categoria profissional nova: a de captador de recursos. Isso é sinal de amadurecimento do Terceiro Setor no Brasil; notem como há cada vez mais novas profissões em torno da área social: captadores, avaliadores, gestores de projetos sociais… Essa profissionalização tem muitos elementos positivos, como os já citados aqui. Mas traz também alguns riscos, dos quais pretendo tratar em um próximo artigo. Até lá!