Assim como outros setores, o campo social privado também tem sofrido com a crise e a instabilidade política no Brasil. O quadro ganha um contorno ainda mais preocupante, porque a Cooperação Financeira Internacional, grande investidora das organizações da sociedade civil brasileiras, já vinha se retirando em razão das sensíveis melhoras econômicas e sociais experimentadas pelo país na última década.
Nesse cenário, a Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) — que representa cerca de 240 instituições — têm apostado na capacitação técnica de suas associadas. Em entrevista à Captamos, a diretora nacional da Abong, Eleutéria Amora da Silva, fala sobre as iniciativas da entidade para enfrentar o momento de turbulência e faz uma análise do atual contexto.
Confira os principais trechos da entrevista.
Captamos: Como a Abong está vendo a captação de recursos nesse cenário político e econômico de crise?
Eleutéria Amora da Silva: Esse é um momento muito crítico, principalmente para quem trabalha com defesa de direitos. É um campo que dependia principalmente da cooperação internacional, que, por sua vez, em função de questões como imigração, está focada na Europa. Hoje, a Abong está num esforço de dialogar com esses setores para dizer que é importante continuar investindo no Brasil. O país é um continente, tem uma sociedade civil forte, muitas nuances, uma diversidade grande, mas, sem esse apoio, é complicado.
C: A cooperação internacional vinha se retirando desde que a situação econômica brasileira melhorou no primeiro decênio do século XXI. Já havia começado a substituição do capital internacional pelo nacional ou isso não chegou a acontecer?
Eleutéria: Não chegou a acontecer. Nós temos a questão tributária das organizações da sociedade civil sem fins lucrativos, que são extremamente penalizadas. Por exemplo, quem não tem a Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social não recebe isenção da taxa patronal, cujo valor é muito alto. Quando se negocia um projeto com a cooperação internacional, você mostra o quanto de recurso vai para o governo e que não volta em benefícios para a população. A gente ainda não estava tendo a contrapartida do estado brasileiro para as organizações da sociedade civil. A Petrobras, por exemplo, que apoiou projetos de várias organizações, parece agora estar diminuindo drasticamente e não vai renovar esses apoios. É uma perda imensa pelo país afora.
Do ponto de vista governamental, estamos na luta pela regulamentação nos estados da lei 13.019 (Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil), que legisla sobre repasses de recursos entre entes públicos e privados, criando um ambiente jurídico mais seguro para as organizações. Se os estados estão com problemas financeiros, assim como a União, não será o nosso campo que terá privilégios na divisão desses recursos. É um momento muito difícil, muitas organizações estão fechando.
C: Vocês estão observando esse cenário de fechamento de organizações?
Eleutéria: É um cenário muito preocupante. A Abong está atenta, fazendo esforços. Estamos querendo ter uma conversa sobre a cooperação internacional, qual o papel dela, que não é só de transferência de dinheiro. É de criar laços de solidariedade em momentos tão difíceis para todos nós.
C: O que vocês estão fazendo para mitigar esses problemas?
Eleutéria: Estamos investindo na formação das nossas associadas em relação à gestão, à transparência, à implementação da lei do marco regulatório. Para os municípios, ela entra em vigor em 23 de janeiro. Desde 2014, fomentamos a construção de uma frente parlamentar em defesa das organizações da sociedade civil, contra a criminalização dos movimentos sociais. Cada vez mais, as organizações terão de ter uma maior capacidade política e técnica de se articular. Há uma disputa muito grande por recursos.
C: A escassez dos recursos internacionais e nacionais afeta diferentemente algumas causas ou todo o setor está sofrendo?
Eleutéria: Todo o setor está sofrendo, mas ela afeta especialmente as políticas na ponta. No Rio de Janeiro, a primeira secretaria a ser desmantelada é a de assistência social. As organizações estão tendo de demitir, muitas estão fechando a porta e outras trabalhando de forma precária. Na medida em que os estados entram em calamidade, a política pública deixa de atender e as pessoas vêm pedir ajuda para nós. Sou de uma organização feminista e, no caso da violência contra as mulheres, aumentou drasticamente o número de pedidos de ajuda que recebemos. Nesse sentido, o trabalho que a Captamos está fazendo é muito importante. As organizações precisam ter conhecimento maior para desenhar um projeto.
C: Que tipo de iniciativa vocês estão tomando para sensibilizar a cooperação internacional?
Eleutéria: Estamos promovendo conversas, apresentando a conjuntura nacional e o momento que estamos vivendo e por qual motivo precisam investir no Brasil. Tem havido uma boa recepção. Estão fazendo suas análises. É uma área difícil, mas acho que pode ter algum alento para nós. A cooperação internacional está tentando entender o que acontece no Brasil e não quer deixar o país sem apoio. A chamada cooperação internacional nunca saiu do país. Ela diminuiu o volume de recursos. Preferiu trabalhar em rede, de outras formas.
C: Você considera que esse cenário atual é impactado só pela questão econômica ou é afetado também pela situação política?
Eleutéria: A questão política afeta bastante. Temos de entender que é fundamental investir no fortalecimento das organizações da sociedade civil. O Brasil é um país de profundas desigualdades, e elas não serão enfrentadas somente com o governo. Há públicos com os quais são as organizações quem mais dialoga. O que aconteceu? Tudo caminhava para o Brasil deslanchar. Parece que não estava tão fortalecido quanto aparentava. O tecido democrático, a manutenção das instituições, isso está tudo em cheque. Tem de abrir diálogo para mostrar o quanto é importante estar no Brasil e contribuir com nosso fortalecimento. Por outro lado, temos de, nesse processo de nova redemocratização do país, estar de olho na disputa dos recursos.
C: O cenário político aponta, de certa forma, para um estreitamento de direitos?
Eleutéria: Exatamente. E aí é ainda mais necessário a cooperação internacional nos apoiar nessa luta por direitos e cidadania, que estão indo para o ralo. É um cenário de perda de direitos a passos galopantes. Em seis meses, houve o fim da Secretaria de Mulheres, de espaços de conselhos que vinham se fortalecendo, que garantiam a participação da sociedade civil. O papel da sociedade civil é resistir para não perder mais ainda o que conquistamos nesses anos.
C: Passou de uma atitude ativa para uma atitude defensiva contra a perda de direitos?
Eleutéria: Passou para a resistência, para a manutenção do que a Constituição nos garante, e não rasgar a Constituição, que é o que o governo atual está tentando fazer.
Eleutéria Amora da Silva,
Diretora nacional da Abong.