Há 25 anos, o britânico Ken Burnett lançou um livro que ampliou o horizonte da captação de recursos em todo o mundo. A ideia por trás de “Relationship Fundraising” parecia simples e, ao mesmo tempo, inovadora: era preciso deixar de lado metas puramente financeiras e colocar o doador no centro da captação.
A obra teve grande impacto e Burnett se tornou referência na área. A questão é que, apesar de os conceitos defendidos no livro terem sido largamente discutidos, foram pouco aplicados na prática, segundo o autor.
Nesta entrevista Burnett explica por que a abordagem baseada no doador não se enraizou, faz uma análise do setor social e alerta: “Chegou a hora de os captadores acordarem e mudarem de uma cultura de aquisição, voltada para metas financeiras de curto prazo, para uma cultura com experiência mais positiva do doador.”
Confira a entrevista.
Captamos: Como era a captação de recursos quando seu livro foi publicado?
Ken Burnett: O mundo era bem diferente em 1992 — não havia internet nem telefones celulares. No Reino Unido, a captação de recursos estava começando a se profissionalizar. Naquela época, havia poucas opções de cursos para captadores e alguns poucos seminários ou convenções como os que vemos hoje em dia. Os captadores focavam principalmente em eventos, redes regionais e doadores individuais. O marketing direto para organizações da sociedade civil ainda estava se iniciando. A aquisição de doadores era o mais importante, fazia-se pouco sobre a retenção. A ênfase dos cursos era no “como fazer” prático, em vez de alguma abordagem filosófica capaz de sustentar a captação. Legados (heranças destinadas a organizações) e pequenas doações mensais de indivíduos eram os principais objetivos, as duas maneiras mais promissoras para crescimento rápido. Então, foquei meu livro particularmente nessas propostas da captação.
C: Quais são os principais conceitos apresentados na sua obra? Por que o livro recebeu tanta atenção?
KB: Meu principal argumento era de que captar recursos não era como fazer uma venda. A relação entre doador e causa precisa ser muito maior e mais profunda do que algo meramente transacional. Captadores de recursos estão no ramo da inspiração. E, paradoxalmente, captação de recursos não é sobre dinheiro, mas sim sobre um trabalho que precisa ser realizado. O dinheiro é o meio para um fim, e não um fim em si. No começo, o subtítulo do meu livro parecia atrair mais atenção do que qualquer outra coisa: “A abordagem baseada no doador para o negócio de arrecadar recursos”. Lembre-se de que naquela época não havia nenhum bom livro britânico sobre captação de recursos e informações confiáveis eram escassas. Filosoficamente, captadores se animaram com a abordagem baseada no doador, porque era isso que desejavam praticar — eles não queriam pressionar ou persuadir as pessoas, e sim inspirá-las. Mas a obsessão do setor de captação com a economia e sua relutância em investir, mais os processos e sistemas rígidos enraizados em suas organizações, atuaram contra uma abordagem mais pessoal e verdadeiramente individual. Assim, à parte casos isolados, não havia possibilidade de uma mudança geral no setor para uma captação de relacionamento. E frustradas de maneira geral por baixos investimentos, estruturas organizacionais restritivas e estanques, para minha tristeza, as mudanças não aconteceram mesmo.
C: Na sua avaliação, o setor social mudou depois da publicação do seu livro?
KB: Não o suficiente, na verdade. Penso que estávamos tentando mudar a captação de recursos isoladamente, e não como parte de uma mudança cultural maior de todo o setor, e que precisava ser abraçada pelos diretores, pelos conselheiros e pelo resto das estruturas das organizações. Então, enquanto cópias do livro estão sendo vendidas no mundo todo e eu tenho sido chamado para dar palestras sobre seus conceitos em todos os continentes, a abordagem baseada no doador não se enraizou no setor, nem mesmo em meu país. A abordagem comercial de grande volume e impessoal ainda parece ser, para a maioria das pessoas, o caminho mais curto e fácil até o dinheiro. Infelizmente, a alta rotatividade do pessoal de captação e a pouca retenção de doadores regulares definem minha época na captação de recursos.
Para responder sua pergunta, sim, mudou, no sentido de que em todo o setor, as pessoas começaram a falar mais sobre doadores e relacionamentos. Mas não mudou o suficiente, caso contrário, a catástrofe que abateu a captação de recursos no Reino Unido em 2015 não teria acontecido — naquele ano, veio a público o caso de uma idosa de 92 anos que teria se matado depois de receber centenas de solicitações de doação de variadas entidades. A história não era verdadeira, mas trouxe à tona uma série de outros relatos de abusos cometidos por captadores de recursos. Sob pressão da opinião pública e do governo britânico, foi criada a Commission on the Donor Experience (Comissão para a Experiência do Doador ), que tinha Burnett entre seus membros, para promover boas práticas sobre captação.
C: Você acha que ideias apresentadas no seu livro foram aplicadas?
KB: Acho que muita gente falou sobre ser focado no doador, mas suas práticas não foram sempre muito amigáveis com ele, nem se preocuparam com sua experiência de uma maneira central, como deveria ser. O marketing de massa e uma captação de estilo transacional eram a cultura enraizada em muitas organizações e, apesar de em seminários, artigos e tutoriais, as pessoas falarem sobre a filosofia de uma captação de relacionamento, muitas vezes, não passava de discurso. Portanto, enquanto minhas ideias foram abraçadas e largamente discutidas onde quer que houvesse captadores reunidos, em muitos casos, eles não as colocaram em prática. O que, como mostraram os acontecimentos, custou muito caro.
C: O que significa exatamente ser uma organização centrada no doador?
KB: Até onde eu sei, não há uma única definição aceita universalmente. No meu ponto de vista, isso é simplesmente o equivalente a perguntar o que seu consumidor quer. É sobre dar às pessoas o que elas querem receber de você, e não o que você quer que elas recebam. Parece simples e óbvio, mas dê uma olhada nas organizações sem fins lucrativos e você verá o quão longe a prática está da teoria. É preciso colocar o comprometimento com o doador no coração das suas estratégias de captação, em vez de colocar metas financeiras. Significa que você terá primeiro de inspirar seus doadores, e então confiar que eles lhe ofereçam apoio e tornem o processo fácil e gratificante para si. É sobre confiar o bastante em seus doadores para lhes dar o controle prático da relação com a causa — o que eles receberão, quando e como.
C: Há organizações sem fins lucrativos que implementaram sua abordagem baseada no doador e tiveram sucesso? Quais?
KB: Sim, muitas tentaram, algumas com muito sucesso, outras, com graus variados de sucesso. Os melhores casos documentados estão no site SOFII.org.
C: O que pode acontecer se as organizações da sociedade civil não mudarem sua abordagem sobre captação de recursos? O sistema está em perigo como um todo? Esse é um problema mundial?
KB: Sim, definitivamente é um problema mundial, e a catástrofe que se abateu sobre o Reino Unido pode facilmente acontecer em muitos dos outros mercados mais estabelecidos de captação. Chegou a hora de os captadores acordarem e mudarem de uma cultura de aquisição, voltada para metas financeiras de curto prazo, para uma com experiência mais do doador, que garanta que mais dinheiro será levantado no longo prazo com doadores mais felizes, que doarão mais por um tempo maior. Esse é o objetivo da Comissão para a Experiência do Doador — nada menos do que mudar a cultura de captação, colocando a experiência do doador em seu centro.
C: Você acha que estamos prestes a entrar em uma era em que os doadores terão mais poder do que nunca?
KB: Sim, as organizações devem colocar os doadores no controle daquilo que recebem e dar a eles escolhas genuínas e práticas que garantam seu conforto e sua satisfação em todos os estágios de sua jornada. As consequências serão doadores mais felizes, que ficam mais tempo e que doam mais. Mas primeiro, as organizações terão de fazer o que for preciso para colocar a casa em ordem. Por enquanto, há sinais limitados de que estão preparadas para fazer isso suficientemente e de uma maneira rápida o bastante. Se não o fizerem, a captação irá cair.
C: Como as mídias sociais estão mudando a captação? É mais fácil ser centrada no doador por causa delas?
KB: Sim. A tecnologia agora nos permite contatar os doadores de maneiras mais fáceis e baratas. Enquanto o que doadores querem e o que os motiva não mudou, como nos comunicamos com eles mudou muito. E captação é muito sobre uma comunicação efetiva. Mas nem todos os doadores estão on-line.
C: Você acredita que suas ideias serão totalmente implementada pelo setor?
KB: Essa é a pergunta de U$ 64 milhões. Queria saber a resposta. Claro que eu espero que sim. A Comissão para a Experiência do Doador cumpriu seu papel e foi desmobilizada, passando a responsabilidade para uma nova iniciativa voltada para a experiência do doador chamada Institute of Fundraising (Instituto para a Captação de Recursos). Então, a resposta para sua pergunta está nas mãos deles. Vamos observar seu progresso com atenção. Pessoalmente, não estarei intimamente ou mesmo formalmente envolvido. Pretendo ser um apoiador crítico do lado de fora do campo.
Ken Burnett, autor, palestrante e consultor
em Captação de Recursos