A ideia de organizações da sociedade civil construírem um relacionamento com doadores foi apresentada pela primeira vez por Ken Burnett em 1992. Ele listou uma série de fatores que eram importantes para uma boa relação: agradecer aos doadores, responder a eles em um tempo razoável, tratá-los respeitosamente, oferecer um reconhecimento apropriado, respeitar seus desejos, ser aberto e transparente e coletar dados com precisão eram alguns deles.
Segundo Adrian Sargeant, co-diretor do Institute for Sustainable Philanthropy (Instituto de Filantropia Sustentável, em português) nas últimas duas décadas, o setor apresentou uma grande evolução: “Paramos de ver as pesquisas como um instrumento de marketing para reunir dados e começamos a usá-las como um meio de integração, o que permitiu a segmentação de doadores”. A personalização ganhou cada vez mais espaço nesse contexto, pois mostra que as organizações escutam os doadores e é justamente isso que ajuda a fortalecer essa relação.
No início dos anos 2000, uma nova abordagem emergiu: o relacionamento com doadores 2.0. Derivado do universo corporativo, o modelo propunha que o relacionamento com doadores se baseasse em três fatores: satisfação, comprometimento e confiança. Porém, para Adrian, isso se mostrou falho, já que essa abordagem foi desenvolvida em uma área na qual os principais paradigmas são as relações de troca, ou seja, as pessoas pagam por produtos e serviços. Esse contexto é muito diferente do Terceiro Setor, que possui trocas, mas é permeado por relacionamentos comunitários.
“Outro problema é que não é fácil saber como melhorar esse relacionamento. Não há receita indicando como podemos desenvolver relacionamentos mais consolidados com doadores. O comprometimento baseado na confiança e na satisfação são indicadores mais precisos em relação a como digo que vou me comportar no futuro. Eles são menos poderosos em predizer comportamentos futuros. Há uma diferença entre essas duas coisas”, pontua.
Nesse modelo, o doador é colocado no centro da comunicação e utiliza-se muito o pronome “você”. Ao invés de dizer como a organização é incrível, por exemplo, o foco é engrandecer os doadores: “Com sua ajuda, todas essas coisas acontecem”, “Sem você isso não será possível”.
Adrian ressalta que o problema é que as organizações não conhecem muito bem essas pessoas e sua proposta é o relacionamento com doadores 3.0, no qual prevalece a identidade do doador, isto é, quem ele é quando contribui com a instituição e não o motivo de escolher fazer isso. Essa resposta não é tão óbvia porque os seres humanos possuem uma variedade de identidades diferentes como a moral, relacional, organizacional, dentre outras.
O Institute for Sustainable Philanthropy realizou um experimento que mostra o valor de personalizar a comunicação com os doadores de acordo com suas identidades. Foi solicitado que o público utilizasse cinco palavras para descrever sua identidade de doador. Posteriormente, o instituto selecionou essas palavras nos materiais de comunicação com essas pessoas. A resposta do público aos pequenos ajustes mostrou que adaptar as estratégias de comunicação de acordo com a identidade do doador pode ser muito valioso para a captação de recursos.
Adrian sugere que as instituições adotem palavras mais genéricas no início do relacionamento com doadores porque não existe ainda um senso bem definido sobre sua identidade. Após a solidificação dessa relação com algumas doações, a instituição pode desenvolver formulários para compreender melhor quem é seu doador e extrair o máximo proveito dessas informações ao dialogar com ele.
Não é simplesmente trocar as palavras, se a entidade fizer isso será algo superficial. “O que é mais interessante quando você obtém um retrato de quem as pessoas são é que você começa a desenhar conteúdos com os quais aquela pessoa se identificará. Você pode começar a elaborar esses pequenos múltiplos engajamentos que irão se encaixar com aquela pessoa. Não é só trocar palavras, mas também pensar: ‘Agora que realmente entendo quem essa pessoa é, o que posso fazer para adicionar valor para ela de alguma forma? Esse é o primeiro elemento do relacionamento 3.0”, explica.
Ele exemplifica com uma página que convida o público a incluir a organização em seu testamento. Ao invés de apresentar um texto tradicional sobre o tema, há a possibilidade de adicionar palavras usadas na autodescrição do doador, o que resulta em um texto mais potente, vibrante e atrativo.
A página poderia ser assim:
“Seja um farol de criatividade, brilhando em Chicago, nos EUA e em todo o mundo. Todos os elementos da Lyric – nossos artistas, coro, orquestra, técnicos e administradores são interdependentes, contribuindo para a reputação mundial de excelência da Lyric. A parte mais importante da Lyric, entretanto, é você. Um componente vital do futuro do Lyric é este grupo de doadores que a incluíram em seus planos patrimoniais (…)”.
Outro elemento importante do relacionamento com doadores 3.0 é o bem-estar. “Há três elementos do bem-estar humano que podemos conectar ao bem-estar na captação de recursos: conectividade, autonomia e competência. Seres humanos querem se conectar com outras pessoas que amam ou com quem se importam e, quanto mais forte é esse senso de conexão, mais bem-estar as pessoas sentem”, observa Adrian.
Essa conexão ocorre de várias maneiras e pode estar atrelada à causa da uma entidade, ao voluntariado e até mesmo ser mais específica como o doador se sentir conectado a uma liderança da organização. Afora isso, os doadores também desejam se sentir úteis e que a autonomia de fazer escolhas conscientes causem impacto positivo na sociedade.
O último componente do modelo de relacionamento proposto por Adrian é o amor. “Existem muitos captadores que enxergam seu papel como captadores de recursos para uma boa causa e não há nada errado com isso. Porém, penso que igualmente a captação de recursos é administrar a capacidade humana de amar. A filantropia é, por definição, amor pela humanidade”.
Na sua opinião, não há muitas organizações que falam sobre esse sentimento, embora algumas façam isso com bastante desenvoltura. A comunicação está muito relacionada à questão monetária, como se esse fosse o único aspecto relevante. “Existe muita linguagem sobre dinheiro no nosso mundo ou disfarçamos isso de alguma forma. Parece que é só nisso em que estamos interessados. Nas próximas semanas, vocês irão ver muito disso nas campanhas de fim de ano”, afirma.
O amor pode ser explorado de algumas maneiras pela comunicação das instituições. Em uma campanha de matchfunding, o Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) diz o seguinte:
“Seu amor correspondido
Imagine um lar sem família, compaixão sem ação, humanidade sem doação. A sua generosa doação mensal pode fornecer suprimentos desesperadamente necessários às famílias refugiadas e os primeiros três meses serão complementados por um tempo limitado para ajudar o dobro de famílias. Neste Dia Mundial do Refugiado, transforme o seu amor no dobro da assistência vital e no dobro da esperança para refugiados resilientes em todo o mundo”.
Tradicionalmente, a linguagem adotada nesse tipo de campanha não utiliza o termo amor, mas se refere aos valores financeiros que terão um aporte adicional. Ao falar sobre amor, a organização se destaca e transmite a mensagem de uma maneira mais afetuosa. As instituições também podem fazer o mesmo nos e-mails em que solicitam doações. Ao invés de escrever: “Uma criança doente no Iêmen precisa de você”, é possível trocar por: “Envie seu amor para uma criança doente no Iêmen”.
Se as instituições não quiserem usar o termo amor, há a opção de fazerem referências à afetuosidade causada pelo sentimento. Ao invés de simplesmente dizer “obrigada” ao doador, o agradecimento pode ser feito assim:
“É difícil acreditar que as férias estão tão próximas. Uma época do ano que, para muitos, é repleta de amor e dádivas. Você tem sido uma das nossas dádivas e somos extremamente gratos”.
“Acredito que, como setor, podemos pensar no amor de um modo mais complexo, respondendo perguntas como: ‘Que tipo de amor deveríamos construir?’, ‘Quem está no meio dele?’, ‘Como esse amor deve ser?’, ‘O que o poder desse amor pode construir coletivamente?’, ‘Por que esse amor é significativo?’, ‘Como podemos aprofundar esse sentimento?’ e ‘Precisamos fazer uma transição para uma nova forma de amor?”, enfatiza Adrian.
Ele cita dois tipos de amor que podem ser utilizados pela captação: amor compassivo e amor companheiro. O primeiro é quase uma forma altruísta de amor e está centrado no bem que podemos fazer por alguém. Já o segundo é muito mais íntimo, possui um nível mais profundo de afeição e uma vontade de percorrer a jornada da vida ao lado de uma pessoa presente no círculo de relacionamentos.
Veja um trecho de um e-mail para uma doadora baseado no amor compassivo:
“Olivia,
Com apenas seis anos, Walid já conheceu tantas dificuldades. Ele e os 9 membros de sua família foram forçados a sair de suas casas assim que a violência surgiu no Iêmen. E recentemente, Walid foi diagnosticado com fluido no cérebro. Ele tem dificuldade para falar e aprender.
Os pais de Walid se preocupam com ele e querem fazer tudo o que podem para ajudá-lo. Eles lutam para colocar comida na mesa, sobretudo para pagar as despesas dos cuidados médicos. Mas por sua causa há esperança. Seu apoio caridoso proporciona assistência financeira a famílias em situação de vulnerabilidade, assegurando que eles possam acessar a ajuda de que mais precisam. Você enviaria um presente mensal agora?”
Veja outra versão deste e-mail que utiliza características amor companheiro. Nela, a doadora acompanha mais detalhes sobre a jornada da família e pode até se sentir mais conectada a ela, imaginando como seria se sua família não conseguisse pagar despesas básicas.
“Olivia,
Os pais de Walid sempre adoraram seu pequeno menino. Mesmo quando eles abandonaram sua casa bombardeada, o sorriso dele iluminou seus dias. Seu entusiasmo infinito pela vida lhes deu força para continuar.
Recentemente, a família recebeu notícias devastadoras. Walid foi diagnosticado com fluido no seu cérebro. Ele tem dificuldade para falar e aprender. A família de Walid tem sido testada até o limite. Não há dinheiro para o aluguel, comida ou água, muito menos para médicos caros. Hoje, seu presente amoroso mensal é urgentemente necessário”.
Ao recorrer a todos esses elementos, o relacionamento com doadores 3.0 sugere que as entidades do Terceiro Setor tragam mais atratividade para suas comunicações, impulsionando a captação de recursos e a maximização do impacto das causas.
As dicas de Adrian foram compartilhadas durante o The international Fundraising Congress 2023
Texto publicado pela Captamos, editoria da ABCR de conteúdos aprofundados sobre mobilização de recursos para causas.