Já o contrário da doação é o comércio. Enquanto uma doação ou um presente cria laços e um sentido de comunhão entre os envolvidos, a venda ou compra de um produto ou serviço não necessariamente. O comércio tende a ser impessoal, baseado na ideia de equivalência. Quando se compra algo por um preço justo, a relação termina ali: não resta obrigação ou expectativa de nenhuma parte.
Doar ou presentear alguém, ao contrário, pressupõe que se queira fortalecer e alimentar a relação. Por exemplo, por meio da reciprocidade: quando alguém a quem presenteamos nos dá outro presente de volta – não por que a gente cobra, mas sim por que o outro se voluntaria para retribuir. Obrigado pelo jantar, o próximo é na minha casa.
Mas esse elo de doação – apenas entre duas pessoas ou grupos – é o mais simples. Os laços com maior potencial de crescimento acontecem quando o círculo de doação é aberto e envolve terceiros, quartos, quintos…
Esse tipo de generosidade em cadeia acontece em bons programas sociais com multiplicadores. O melhor exemplo que vi veio de uma fundação paulista que formava jovens para serem leitores para crianças pequenas. Pois esses jovens – que já eram em si público-alvo do programa – tomaram a iniciativa de também contribuir financeiramente para a manutenção do programa. As doações eram pequenas – de 1 a 10 reais – mas eram grandes o bastante para criar mais um elo solidário.
Lewis Hyde também associa gift a talento, paralelo que da mesma forma cabe à doação. Podemos falar nela como um dom: pesquisas recentes mostram como o ser humano nasce com a capacidade de altruísmo e de se importar com os outros. Mas não basta o impulso da natureza: é preciso exercitar e encorajar esse dom; ele precisa ser desenvolvido e praticado no mundo real. Aí está mais um privilégio do captador de recursos: é alguém que facilita o desenvolvimento de mais um talento humano.
Isso não quer dizer que não há um lado escuro e problemático do impulso doador. A conexão que se estabelece pode ser excessiva e até opressiva. Imagine um jovem que quer se tornar mais independente: pode ser importante parar de aceitar presentes de seus pais. Da mesma forma, uma comunidade pode preferir rejeitar alguns tipos de doações para reforçar a autonomia de suas decisões e prioridades.
Acima de tudo, dependendo de como é feita, a doação pode se tornar um demarcador de poder: doo porque espero receber gratidão, porque espero que outros fiquem em dívida com minha “bondade”. Pode-se falar até em tirania da doação, que usa o poder de comunhão da generosidade para manipular ou humilhar as pessoas. Como exemplo, uma rima da época da escravidão americana é citada por Lewis em seu livro, aqui traduzida livremente:
A ideia aqui não é condenar esse lado comercial, apenas defender a seguinte visão: é mais do que necessário, é vital que os envolvidos com a ONG – captadores, gestores, fundadores, voluntários – mantenham acesa pelo menos uma parte relevante de espírito de dádiva em seu dia a dia.