Um mapeamento recém-lançado pela Rede Comuá traz à luz informações e práticas que, muitas vezes, estão fora do campo de visão da filantropia mainstream e do investimento social privado. O estudo “Filantropia que Transforma” mapeou 31 organizações independentes doadoras para sociedade civil nas áreas de justiça socioambiental e desenvolvimento comunitário no Brasil e os resultados indicam que elas desempenham um papel fundamental na canalização eficaz de recursos para coletivos e movimentos, incluindo aqueles que não estão formalizados.
“Esta pesquisa, de alguma forma, mostra a diversidade do campo da filantropia independente e também a sua complexidade, porque a gente está perante um campo muito heterogêneo, com elementos comuns mas com especificidades que nos dão uma ideia de que é um campo diverso”, disse coordenadora da Rede Comuá, Graciela Hopstein, durante a live de lançamento da pesquisa.
O conceito de “independentes”
“Nós estamos principalmente focando nesse grupo de fundos comunitários, fundos temáticos, fundações comunitárias, outras organizações da sociedade civil que têm esse lugar que nós chamamos de organizações independentes doadoras. Independentes aqui é uma palavra muito importante e faz parte inclusive dos critérios. Está neste lugar não só da independência em termos da sua gestão da sua governança, mas também em relação a sua mobilização de recursos”, explicou durante a live de lançamento da pesquisa Cássio Aoqui, diretor-executivo da ponteAponte, consultoria responsável pela coordenação técnica da pesquisa.

“Para participar desse mapeamento, é importante que essas organizações mobilizem recursos de uma maneira diversificada, ou seja, não dependam só de uma empresa, uma família, enfim, algo mais nessa linha. Elas mobilizam recursos com financiadoras das mais diversas, inclusive pessoas físicas, e elas fazem um aporte de grantmaking, ou seja, esses apoios estruturados a associações, coletivos, grupos, movimentos sociais e lideranças sociais como um todo. Então a gente está falando aqui desse lócus da filantropia, que tem independência e tem esse olhar de transferência de poder”, disse Aoqui.
Localização
A maioria das organizações mapeadas surgiu após os anos 2000 e estão espalhadas por diferentes regiões do Brasil, com concentração em São Paulo. Segundo Aoqui, algumas organizações mapeadas não são de São Paulo, mas estão lá por entenderem que precisam. “Tem organizações que, inclusive, explicitam: ‘não sou, mas estou em São Paulo porque tem códigos de conduta e códigos estéticos que eu preciso estar em São Paulo para poder fazer minha atuação de uma maneira mais ampla’”.

Doações para fortalecimento institucional
Uma das principais descobertas do estudo é que a prioridade das organizações independentes doadoras é apoiar o fortalecimento institucional, com 74% das respondentes indicando que suas doações são destinadas a esse propósito. Essa abordagem é vista como crucial para fortalecer organizações que atuam na defesa de direitos socioambientais e humanos. “Esse olhar para fortalecimento institucional é muito interessante, a gente vê que existe uma uma tentativa hercúlea de ser um apoio com mais autonomia, olhando para pautas interseccionais. Então, tudo isso acaba fazendo parte dessa forma de se fazer filantropia”, disse Aoqui.
Além do destaque para o fortalecimento institucional, o mapeamento revela que as organizações independentes doadoras também se destacam por priorizar áreas de apoio interseccionais, como gênero, direitos das mulheres, cultura, desenvolvimento comunitário, agricultura familiar, comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas e tradicionais.

Para o coordenador-executivo da Iniciativa Pipa, Gelson Henrique, convidado pela Rede Comuá para a live de lançamento, a doação para fortalecimento institucional é algo inovador para o Brasil, ainda que não seja algo, de fato, inovador. “Mostra o poço em que nós estamos”, disse ele. Citando o estudo Periferias e Filantropia – As barreiras de acesso aos recursos no Brasil, Gelson lembrou que em 58% das organizações pesquisadas todas as pessoas são voluntárias e que em 85% a equipe gestora tem mais de um emprego.
“Então a gente está falando de jornada dupla de pessoas que gerem organizações de periferia no país. Se forem mulheres, triplas, se forem mães, vão ser jornadas quádruplas. Então, qual é o cenário que uma filantropia que chegue nos territórios periféricos do país ajuda a transformar?”, disse Gelson. “Por isso que é importante, inclusive, nós falarmos de uma decolonização da filantropia, porque a filantropia como está posta é colonial no seu conceito e nas suas práticas. Decisões de para onde vai o recurso são decisões políticas”, completou.
Das organizações que fizeram doações em 2021, 49% repassou até R$ 1 milhão e 35% repassou de R$ 1 milhão a mais de R$ 25 milhões
Fontes de Recursos e Relações com Financiadores
A pesquisa destacou que as doações de organizações internacionais continuam sendo a principal fonte de recursos para a filantropia comunitária e de justiça social no Brasil. “Elas são as mais mais frequentes entre as origens das fontes de recursos das organizações mapeadas, tanto para membras como não membras da Rede, com 43% de menções em ambos os casos”, indica o estudo. Em seguida, são mencionadas as doações de organizações da filantropia nacional e as doações de pessoas físicas (com ou sem incentivo fiscal).
O mapeamento mostra, ainda, que a maioria das organizações independentes doadoras concentra seus recursos em até 25 financiadores (76%), enquanto apenas algumas (9%) têm mais de cem financiadores. Isso destaca a importância de estratégias eficazes para angariar doações de pessoas físicas, especialmente para as organizações com menos financiadores.
A busca pela independência na relação entre as organizações doadoras e seus financiadores é uma característica fundamental da filantropia comunitária. Nesse contexto, a maioria das organizações mapeadas (68%) afirma que os financiadores não têm influência sobre o uso de recursos, processos de tomada de decisão e governança.
No entanto, entre as organizações em que os financiadores têm alguma forma de influência (32%), essa influência ocorre principalmente por meio da participação igualitária em conselhos da organização, iniciativas específicas de engajamento cívico, contribuição na construção de projetos de financiamento e participação na governança dos projetos apoiados. O diálogo horizontal e a valorização da participação dos financiadores como colaboradores e construtores de conhecimento são aspectos essenciais desse relacionamento.
Desafios e Oportunidades
O mapeamento identificou diversos desafios e oportunidades para as organizações independentes doadoras no Brasil. Entre os desafios externos, destacam-se a hostilidade da última gestão do Governo Federal em relação às organizações da sociedade civil, agravada pela pandemia de COVID-19, que levou a uma sobrecarga de trabalho. Além disso, as organizações enfrentam dificuldades na disseminação e compreensão da filantropia comunitária, especialmente aquelas localizadas em áreas distantes dos grandes centros urbanos.
No que diz respeito ao financiamento, embora tenha havido um aumento nas doações durante a pandemia, as organizações acreditam que o Brasil ainda precisa fortalecer sua cultura de doação, principalmente por parte das pessoas físicas.
Internamente, os principais desafios incluem equipes reduzidas e sobrecarga de trabalho, o que prejudica a realização de atividades como a mobilização de recursos e a articulação com redes. Além disso, há falta de tempo e recursos para a capacitação contínua da equipe, incluindo aspectos tecnológicos e de segurança digital, e dificuldades na comunicação com o público externo.
No entanto, as organizações enxergam oportunidades no processo eleitoral de 2022, com a mudança de governo e um projeto político mais inclusivo no país. Também notam que os investidores sociais estão mais receptivos para conhecer novas práticas filantrópicas e se interessam por questões que antes não estavam em destaque.
Apesar dos desafios, as organizações acreditam que seu trabalho é de grande importância e tem potencial de crescimento, seja na diversificação da captação de recursos, seja no aprimoramento de suas práticas.
Para acessar a pesquisa completa, acesse: redecomua.org.br/biblioteca/
Veja também: Doações irrestritas aumentam autonomia do Terceiro Setor
Texto publicado pela Captamos, editoria da ABCR de conteúdos aprofundados sobre mobilização de recursos para causas