Quando uma tragédia de proporções épicas ocorre em alguma parte do mundo, as imagens de devastação são transmitidas instantaneamente por toda parte pelos jornais, televisão e pela Internet. O resultado é um transbordamento de ajuda, muitas vezes sob a forma de doações a instituições sem fins lucrativos como a Cruz Vermelha Americana. Contudo, no momento em que as imagens terríveis e as notícias desaparecem das manchetes dos jornais, os doadores quase sempre desaparecem também.
A dificuldade para grupos como a Cruz Vermelha consiste em identificar os doadores que contribuíram uma vez e fazer contato com eles, para que se tornem doadores regulares. “Não há canal mais eficaz para se conseguir novos doadores do que a resposta a um desastre”, diz Tony DiPasquale, diretor sênior de inteligência de mercado da Cruz Vermelha. “Há tempos nos esforçamos para fazer com que os doadores deixem apenas de nos socorrer em época de tragédia e passem a dar apoio à missão básica da instituição.”
A solução desse enigma seria uma bênção para a Cruz Vermelha e outras instituições filantrópicas como ela que precisam descobrir maneiras econômicas de melhorar a angariação de fundos. A resposta talvez esteja na análise de dados do cliente, isto é, na coleção e prospecção de dados sobre o comportamento do consumidor que já está revolucionando a forma pela qual as empresas que visam lucro atuam. Em parceria com o Projeto de Análise de Dados do Consumidor da Wharton [Wharton Customer Analytics Initiative-WCAI], a Cruz Vermelha se juntou a seis equipes de pesquisadores de todo o país, entre eles especialistas em análise de dados da Baylor University, da Universidade de Pittsburgh e do Centro de Pesquisas Watson da IBM, que analisarão as informações do banco de dados da Cruz Vermelha para a criação de ferramentas que permitam aperfeiçoar as campanhas de doação da instituição.
O retorno para as empresas sem fins lucrativos como a Cruz Vermelha pode ser tão significativo quanto foi para as empresas que já dominam o campo da análise de dados. “Isso poderia ter um impacto enorme, porque a eficiência no setor de filantropia tem um peso enorme”, observa Eric Bradlow, professor de marketing da Wharton e diretor adjunto do WCAI. “Transformar quem sempre doa em eventos trágicos em doador regular é da maior importância.” Contudo, as organizações filantrópicas que queiram tirar proveito de dados desse tipo terão de enfrentar os mesmos desafios das empresas que visam lucro, dizem Bradlow e outros especialistas — por exemplo, traduzir eficazmente o insight analítico em novas campanhas de conscientização social e encontrar o equilíbrio correto entre o monitoramento dos clientes e o respeito à sua privacidade.
Queda nas doações e doadores “inativos”
A Cruz Vermelha tem bons motivos para se preocupar tendo em vista o quadro econômico atual. De acordo com o Relatório de Levantamento da Eficácia da Angariação de Fundos 2011 feito pela Associação de Profissionais da Angariação de Fundos e pelo Centro Especializado em Empresas sem Fins Lucrativos e Filantropia do Urban Institute, a doação líquida não voltou aos níveis anteriores à recessão. A pesquisa constatou que para cada US$ 5,35 que as empresas recebiam dos doadores em 2010, US$ 5,54 se perdiam devido à queda nas doações ou a doadores que há tempos não contribuíam mais. “O índice de doações ainda tem um longo caminho a percorrer antes de atingirmos os níveis de pré-recessão, e tudo começa pela redução do número de doadores que deixaram de contribuir”, observou Andrew Watt, CEO da Associação de Profissionais de Angariação de Fundos, por ocasião da publicação do relatório no último trimestre de 2011. “Esse é um dos principais desafios que enfrentam as instituições de caridade: a perda de cerca de 60% de doadores todos os anos e a confiança exagerada em novos doadores. É muito mais barato conservar e inspirar os doadores existentes do que encontrar doadores novos, portanto as instituições de caridade deveriam se preocupar com os doadores atuais reduzindo as perdas nesse segmento.”
Para a Cruz Vermelha, conservar os doadores em episódios de catástrofes é essencial para que a entidade cumpra sua finalidade. Janet Couperthwaite, diretora de contabilidade da empresa de marketing e comunicações Russ Reid, que orienta a Cruz Vermelha em campanhas de conscientização social, ressalta que além de socorro em situações de catástrofe, a Cruz Vermelha também realiza serviços assistenciais e educacionais — como, por exemplo, o atendimento a 60.000 casos de incêndio em casas todos os anos nos EUA, treinamento em ressuscitação cardiopulmonar, orientação para babás etc. — que requerem fundos estáveis o ano todo. De acordo com DiPasquale, da Cruz Vermelha, num ano seguinte a um grande desastre, menos de 10% dos que fizeram doações se tornam doadores regulares. “Essa gente tem menos chance de voltar, a menos que ocorra um evento do mesmo calibre”, diz ele.
O projeto da Cruz Vermelha em parceria com o WCAI tem como objetivo mudar essa equação. As seis equipes selecionadas para o projeto estudarão um conjunto de dados de mais de 500.000 doadores da instituição cuja contribuição se deu entre 2006 e 2011. O objetivo é criar novas ferramentas que melhorem a eficiência da angariação de fundos. A equipe do Centro de Pesquisas Watson da IBM, por exemplo, criará ferramentas de software que deem à Cruz Vermelha novos meios de visualizar e trabalhar os dados. “A visualização dos dados é um tópico da maior importância”, observa Kurt Kendall, chefe do Centro de Análise de Marketing do Consumidor da McKinsey. “De acordo com todo um corpo de pesquisas, o ser humano é péssimo para analisar números numa tabela e tirar conclusões com base neles. No entanto, o cérebro humano é muito bom em reconhecimento de padrões visuais.”
Outro grupo, desta vez da Baylor University, estudará de que maneira a comunicação dirigida a doadores da organização afeta o índice de respostas. “Serão analisadas as cartas dos doadores para ver que tipo de mensagens elas contêm, e qual a psicologia por trás da mensagem que leva a pessoa a se envolver”, diz Elea Feit, professora de marketing da Wharton e diretora de pesquisa do WCAI. (Para saber mais sobre a parceria do WCAI com a Cruz Vermelha, assista ao vídeo: “Usando dados para conquistar doadores da Cruz Vermelha em episódios de catástrofes”).
Chega de reações rápidas sem prever as consequências
Ao adotar a análise de dados do cliente, a Cruz Vermelha estará seguindo a liderança de empresas que têm usado esse expediente para analisar suas atividades de marketing nos últimos anos. “No marketing, na maioria das vezes tomávamos decisões de forma intuitiva”, diz Feit. “Era um mundo de reações rápidas. Contudo, nos últimos dez anos, à medida que o marketing migrou para plataformas como a Internet e a mala direta, é possível observar o que está de fato acontecendo e que tipo de anúncio leva à aquisição. Existe a possibilidade de tirar proveito desses dados e acrescentar algum rigor à criatividade do marketing.”
O mercado de análise de dados do cliente é grande e está crescendo rapidamente. Embora seja difícil estimar o valor desse segmento — que inclui de tudo, desde sites de redes sociais até empresas de monitoramento de motores de busca —, o mercado de inteligência corporativa, análise e software de gestão de desempenho excedeu, somente em 2010, os US$ 10 bilhões, de acordo com a empresa de pesquisas Gartner. “Os dados das pessoas se tornaram ubíquos”, diz Bradlow. “Companhias farmacêuticas capturam as atividades de prescrição de remédios dos médicos; companhias de cartão de crédito acompanham as informações de compras da sua clientela; entidades sem fins lucrativos mantêm registros de doações — a maior parte das indústrias atualmente coleta dados em nível individual.”
As informações que as empresas com fins lucrativos, ou não, coletam por conta própria, ou as que são coletadas por meio de agregadores administrados por terceiros — não importa — são cada vez mais volumosas e acessíveis. Diferentemente dos tempos dos catálogos e dos call centers, “hoje, se olharmos para todos os pontos de contato que as empresas têm com sua clientela, veremos que estão todos facilmente na casa dos dois dígitos”, observa Kendall, da McKinsey. “As empresas têm seu site, outros sites relacionados ao dela, sites de redes sociais e aparelhos móveis. O volume de dados que esses canais criam também tem crescido significativamente. O desenvolvimento da tecnologia permite combinar todos esses dados de modo que se tenha uma visão de 360 graus do cliente”, diz ele. “Isso não acontece apenas quando o cliente interage com a empresa, mas também quando ele interage com outras pessoas. As vantagens que essa possibilidade oferece são fantásticas — mas podem ser também extremamente desafiadoras. É possível captar quantidades cada vez maiores de informação, mas isso não significa que a empresa esteja preparada para usá-las.”
No caso das empresas preocupadas em reforçar a lucratividade, o retorno decorrente da interpretação desses dados pode ser enorme, portanto é grande a demanda por ferramentas de análise mais aperfeiçoadas. Recentemente, o WCAI realizou um projeto para a Expedia, peso pesado das viagens online, com o objetivo de ajudar o site a descobrir quais opções de hotel deveria exibir para os consumidores que visitavam o site. A StubHub, operadora de passagens aéreas, juntou-se ao WCAI para descobrir como adaptar seu marketing — tanto no que diz respeito ao tipo de mensagem quanto a frequência delas — no intuito de melhorar o volume de transações feitas com um mesmo cliente. Se isso for feito de maneira eficaz, “haverá economia de capital, porque resultará em publicidade mais eficiente”, diz Bradlow. “Do lado da receita, trata-se de maximizar o valor do tempo de vida do cliente.”
Entendendo a avalanche
Para cada empresa que aprendeu a dominar a análise de dados do cliente, há várias outras que ainda estão tentando entender a avalanche de dados disponíveis. Mark Jeffrey, professor sênior de gestão de informações de tecnologia da Escola de Negócios Kellogg, da Northwestern University, estudou 250 empresas de grande porte em 2007, em parte para avaliar o grau de sucesso com que administravam os dados dos clientes em suas operações de marketing. Ao analisar parâmetros como aumento de vendas, retorno sobre ativos e números que mensuravam a eficiência do marketing, Jeffrey descobriu que menos de 18% delas usava de maneira eficaz os dados do cliente. “A maior parte não usava os dados como deveria”, diz ele. “Não basta comprar os dados e o método de análise. É preciso mudar a empresa e os procedimentos de marketing para tirar vantagem dessas informações.”
Bradlow observa o mesmo tipo de dificuldade em várias empresas. “A parte de captura dos dados está bem desenvolvida”, diz ele. “A parte que ainda está embrionária é a que diz respeito ao que fazer com as informações. Creio que boa parte das empresas ainda está tentando descobrir o tipo de análise de dados de que precisa e como modificará seu modelo de negócio.”
Uma série de novas ferramentas introduzidas no decorrer dos últimos dois anos tem como objetivo tornar esse tipo de informação acessível e útil aos gerentes encarregados das decisões nas empresas. “No passado, quando se trabalhava com análise de dados, havia pessoas muito inteligentes lidando com quantidades enormes de informações”, observa Rod Smith, vice-presidente de tecnologias emergentes da IBM. “Agora, há montanhas de dados, e a pergunta que se faz é a seguinte: como escolher rapidamente?” Há mais soluções a caminho, prevê Smith, que levarão a uma revolução na forma como os dados são utilizados. “Dois anos atrás, tínhamos contadores que trabalhavam com diários. As planilhas mudaram isso. Agora há mudanças em curso novamente. Continuaremos a precisar de especialistas em informações, mas observamos que há pessoas desejosas da autonomia necessária para trabalhar com os dados e levar adiante os negócios.”
Ferramentas novas e refinadas, porém, não garantem retorno algum da análise de dados. As empresas precisam também passar por mudanças culturais. Peter Fader, professor de marketing da Wharton e diretor adjunto do WCAI, diz que as empresas muitas vezes usam dados para justificar decisões ou programas já em andamento, em vez de usar essas informações para criar projetos completamente novos. “Há muitas empresas que se consideram movidas por dados, mas que os estão utilizando de maneira passiva”, diz Fader. “As pessoas têm receio de confiar exageradamente nos dados. Elas confiam mais em seu instinto.” É o que pensa também Gareth Herschel, diretor de pesquisas da Gartner: “Se a análise encontra algo surpreendente, devo confiar nela? Estou disposto a mudar o que estou fazendo? Há muita inércia organizacional a ser vencida.”
Em busca de uma rota definida
Se as dificuldades práticas no segmento de análise de dados são assustadoras, a privacidade — pedra de tropeço do setor — é igualmente desafiadora. Como as empresas têm mais acesso a informações detalhadas sobre o comportamento individual do cliente, as regras para o uso responsável dessas informações estão evoluindo. “As empresas estão tentando equilibrar a privacidade do cliente com a tentativa de melhorar sua experiência”, diz Kendall, da McKinsey. “É um equilíbrio difícil. Além disso, há pessoas que não se importam em compartilham seus dados, enquanto outras têm postura mais firme a esse respeito. Não há uma linha clara e visível entre o que é aceitável e o que não é.”
Sem dúvida, muitas empresas se deram mal por não saberem gerir corretamente a privacidade do cliente. As mudanças recentes de política de privacidade planejadas pelo Google suscitaram protestos em alguns segmentos, inclusive um pedido feito pelo deputado democrata Edward Markey à Comissão Federal de Negócios (FTC) para que investigue o assunto. Em novembro passado, a FTC anunciou um acordo com o Facebook em relação a questões de privacidade, um acordo que inclui várias auditorias sobre o tema na empresa de rede social durante os próximos 20 anos. Não é de surpreender, portanto, que muitas empresas de grande porte — entre elas a IBM, General Electric e Apple — tenham criado cargos para a gestão de questões pessoais.
As questões de privacidade são tão críticas — se não mais — para as instituições sem fins lucrativos que dependem de sua reputação altruística para atrair doadores. No caso da colaboração entre Cruz Vermelha/WCAI, o banco de dados sob análise não contém nenhuma informação demográfica. “Queremos evitar qualquer coisa que leve à identificação pessoal — qualquer oportunidade em que você possa, através de engenharia reversa, descobrir quem é quem”, diz Fader.
Além disso, Fader diz que ter informações pessoais sobre os doadores não acrescentaria muita coisa. “Dados demográficos como raça, renda e sexo costumam ser muito pobres em termos de possibilidade de predição”, diz ele. Em vez disso, dados mais objetivos — como a frequência de doação da pessoa e o volume médio de suas contribuições passadas — são indicadores mai confiáveis do seu comportamento futuro. “As empresas estão perdendo tempo indo atrás de alguns tipos de dados.”
Publicado em: 22/02/2012
Fonte: http://www.wharton.universia.net/index.cfm?fa=viewArticle&id=2169&language=portuguese