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Evento histórico reúne governo e sociedade civil para discutir recomendação do GAFI que põe em risco o trabalho de OSCs brasileiras

Pela primeira vez, representantes do Governo Federal e de organizações da sociedade civil debateram juntos a Recomendação 8 do Grupo de Ação Financeira Internacional, que trata do combate ao terrorismo e pode restringir o funcionamento de organizações legítimas no Brasil; entenda o assunto

Resumo da matéria:

  • O que está acontecendo: A Recomendação 8 do GAFI trata da prevenção ao uso indevido de organizações sem fins lucrativos para o financiamento do terrorismo. Apesar do baixo risco de terrorismo no Brasil, OSCs brasileiras enfrentam dificuldades por interpretações equivocadas da recomendação.
  • Evento inédito: Pela primeira vez, governo e sociedade civil debateram o tema em pé de igualdade em dois encontros — on-line e presencial, com participação de entidades como ABCR, GIFE, ABONG, Conectas Direitos Humanos, ABIN, COAF e Secretaria-Geral da Presidência da República.
  • Assuntos discutidos: Especialistas alertam sobre o risco de estigmatização e exclusão de OSCs, especialmente as que atuam em contextos humanitários, além da falta de acesso a serviços bancários. Também foram debatidas possíveis soluções para o problema.

Organizações da sociedade civil brasileiras estão sendo afetadas por interpretações equivocadas da Recomendação 8, emitida pelo Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI), que trata da prevenção ao uso indevido de entidades sem fins lucrativos no financiamento do terrorismo. Mesmo com o Brasil classificado como país de baixo risco, a forma como essa recomendação vem sendo adotada tem dificultado o funcionamento legítimo de muitas OSCs. Para debater o tema e buscar soluções, representantes do governo e da sociedade civil participaram juntos, pela primeira vez, de dois encontros sobre os impactos da recomendação.

O evento Diálogos sobre o GAFI – ENCCLA e Sociedade Civil aconteceu no dia 18 de março, e reuniu entidades como ABCR, GIFE, Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), além de representantes da Secretaria-Geral da Presidência da República e da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA). Dois dias depois, também foi promovido um encontro presencial, em Brasília. Ao contrário do primeiro, mais didático, o encontro presencial teve um caráter mais técnico e estratégico. 

A programação do evento presencial incluiu mesas temáticas que abordaram desde os mecanismos de avaliação do GAFI até as experiências internacionais e as implicações para as organizações da sociedade civil brasileiras. Participaram representantes da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), Banco do Brasil, Procuradoria-Geral da República, além de organizações da sociedade civil como ABONG, ABCR, Conectas Direitos Humanos e Instituto Igarapé. 

“Faz muito tempo que ABCR, Conectas, Coalização das OSCs para o GAFI e várias outras organizações da sociedade civil estão acompanhando esse tema. Esse evento realmente é um marco nessa história de um pouco mais de cinco anos porque foi a primeira vez que a gente fez um evento em pé de igualdade, governo e sociedade civil, para tratar do tema. Todas as mesas tinham representantes de governo e sociedade civil e deu para a gente deixar claro também as nossas preocupações”, afirma Fernando Nogueira, diretor executivo da ABCR.

O relatório do GAFI e o impacto nas OSCs

Em outubro de 2023, uma equipe de avaliadores internacionais desembarcou no Brasil com a missão de medir o grau de aderência do país às 40 recomendações do GAFI, que orientam governos no combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo. A visita marcou a chamada “quarta rodada de avaliação mútua”, parte de um longo processo que durou mais de 14 meses e resultou no relatório Medidas de Combate à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo

A Recomendação 8 do GAFI foi um dos principais focos de atenção das organizações da sociedade civil. Essa recomendação trata especificamente da prevenção ao uso indevido de organizações sem fins lucrativos para o financiamento do terrorismo. Segundo o relatório mais recente do GAFI, o Brasil foi classificado como “parcialmente cumpridor” nessa recomendação.  O alerta preocupa especialmente diante de um cenário em que muitas OSCs enfrentam dificuldades no acesso ao sistema financeiro e já convivem com o risco de interpretações equivocadas sobre sua atuação.

Marconi Mello, do COAF, apresentou um panorama geral sobre a avaliação do Brasil e lembrou que a recomendação trata de financiamento do terrorismo e de  lavagem de dinheiro, nem da governança das OSCs de forma ampla, questões que costumam ser confundidas, o que gera estigmatização de organizações e pode levar à exclusão de do sistema financeiro.

O advogado Pedro Simões trouxe uma perspectiva jurídica e histórica sobre o tema. Ele resgatou o debate em torno da lei antiterrorismo aprovada no Brasil em 2016, fruto de forte pressão internacional — especialmente da OCDE — e da resistência do terceiro setor à criminalização excessiva. “O grande medo que foi enfrentado aqui pelas OSCs seria o de uma tropicalização do conceito de terrorismo que fosse abarcar diversas práticas, diversas medidas de protesto e de manifestação que são comuns de diversas organizações do terceiro setor, principalmente aquelas que têm um caráter mais militante”, afirmou Pedro. A solução adotada na época foi excluir da definição legal atos com motivação política e proteger movimentos sociais. Mas essa decisão, segundo ele, teve um custo: o Brasil se tornou o único dos 40 países analisados pelo GAFI a manter a recomendação 5 (sobre criminalização do terrorismo) como parcialmente cumprida.

Sistema financeiro é entrave

Entre os pontos mais sensíveis levantados, está o tratamento que o setor financeiro ainda dá às OSCs. Marconi destacou que é necessário corrigir equívocos no entendimento de risco dentro dos bancos, que frequentemente categorizam organizações da sociedade civil com risco alto de forma desproporcional — às vezes, de maneira semelhante ao tratamento dado a Pessoas Politicamente Expostas (PEPs), o que dificulta o acesso a serviços bancários básicos.

Estudo realizado pela ABCR entre 2022 e 2023 mostrou que 33% das organizações entrevistadas já tiveram abertura de contas negada, 25% precisaram movimentar recursos por meio de contas pessoais e 17% tiveram contas bloqueadas. A dificuldade de acesso a serviços como cartão de crédito e débito é frequente, mesmo para organizações com grande volume de recursos movimentados.

Fernando Nogueira, chamou atenção para o risco de exclusão e reforçou a importância de evitar que, na tentativa de atender a uma recomendação global, o Brasil acabe penalizando entidades legítimas — especialmente as que atuam em contextos humanitários ou que representam populações historicamente estigmatizadas. Em sua avaliação, é preciso saber porque, mesmo com uma avaliação nacional de baixo risco, o setor financeiro brasileiro continua tratando as OSCs como se representassem um risco alto. Ele propôs quatro hipóteses para explicar esse descompasso:

  1. Desconhecimento do setor – Muitos agentes financeiros não compreendem o funcionamento, a diversidade e a estrutura regulatória das OSCs.
  2. Aversão ao risco – Com receio de sanções, os bancos preferem adotar uma postura extremamente cautelosa, mesmo que injustificada.
  3. Desconfiança estrutural – Embora não desejado, ainda pode haver uma visão preconceituosa sobre o papel das organizações da sociedade civil, especialmente as mais combativas.
  4. Pressão internacional – Como instituições globais, os bancos podem seguir normas internacionais sem considerar o contexto local.

Caminhos possíveis e boas práticas

Um guia de boas práticas para lidar com os riscos identificados na Recomendação 8 do GAFI está sendo elaborado com proposta de construir uma abordagem preventiva e proporcional, que reconheça o baixo risco do país, evite estigmatização e preserve o pleno funcionamento das OSCs. Segundo Marconi Mello, o guia está sendo adaptado à realidade brasileira, com base em diretrizes internacionais, mas buscando evitar excessos. “Não é que nós vamos criar monitoramento para OSCs […] Preferimos ter um resultado de ‘parcialmente cumprido’ do que restringir e não garantir o direito constitucional de liberdade das organizações do terceiro setor”, afirmou.

Entre os princípios em discussão estão: a conscientização permanente sobre possíveis riscos; o incentivo à autorregulação e à governança interna; e o contato com instituições financeiras para corrigir visões distorcidas que levam à exclusão bancária de OSCs. Marconi alertou para situações em que bancos tratam organizações como se fossem pessoas politicamente expostas (PEPs), apenas com base em critérios genéricos de risco — o que compromete sua atuação legítima.

Gustavo Bernardino, gerente de programas do GIFE, trouxe a perspectiva da sociedade civil e reforçou o papel da autorregulação como caminho viável para fortalecer a governança e a transparência no setor. Ele apresentou dados que mostram o avanço das organizações associadas ao GIFE nesse campo: 88% têm conselho deliberativo, 73% possuem conselho fiscal e auditoria independente, e metade publica suas demonstrações financeiras em seus sites. Ele também destacou a importância de reconhecer a diversidade do setor. 

“Das 800 mil organizações que nós temos no país, não dá para ter um tratamento universalizante com punho de ferro sobre essa interpretação dos padrões”, disse. Para ele, é essencial que as medidas considerem a realidade e a capacidade de cada tipo de organização — muitas vezes limitada pela dificuldade de mobilizar recursos.

O evento  Diálogos sobre o GAFI – ENCCLA e Sociedade Civil está disponível na íntegra no canal da ABCR no Youtube:


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