Imagine que um dos homens mais ricos do mundo venha pedir para dar dinheiro a iniciativas sociais. Você pode pensar que se trata de mais um caso típico de “faça o que eu digo, mas não o que faço”. Não é. Por mais incrível que possa parecer, esse multibilionário também doou boa parte de sua fortuna para a caridade.
A pessoa acima referida é o magnata, filantropo e dono da Microsoft, Bill Gates. Recentemente ele deixou de ocupar a lista dos mais ricos do mundo da revista Forbes. Não. Não foi a crise financeira que comeu uma parte gorda do seu bolo. O motivo da queda foi justamente a doação de aproximadamente US$ 30 bilhões. Não contente com isso, Gates tem se empenhado em uma campanha para convencer os donos das maiores fortunas do planeta a se comprometerem em doar metade de todas as suas posses. A lista já conta com quase 40 privilegiados.
Esse é apenas um exemplo de todo um novo movimento que vem ocorrendo no mundo e, também, ainda que mais timidamente, no Brasil. Muito dinheiro começa a chegar às organizações que trabalham em prol da sociedade civil. Mas como fazer com que toda essa fortuna drible o assistencialismo e seja realmente aplicada de forma eficaz, promovendo verdadeira transformação social?
A resposta pode estar no venture philantrophy, uma nova proposta de investimento social que combina filantropia e gestão estratégica. Nascida nos Estados Unidos, no final da década de 1990, o conceito da filantropia empreendedora leva o planejamento e a avaliação de resultados aos empreendimentos sociais. Porém, diferente da lógica do investimento social tradicional, o venture philantrophy ocorre por meio da aplicação de princípios do venture capital, com investimentos de longo prazo, monitoramento e suporte proativo para maximização do retorno.
O próprio Bill Gates faz uso dessa estratégia na Fundação Bill e Melinda Gates, a maior instituição humanitária do mundo, criada por ele e sua esposa. Gates costuma dizer que sua ação dentro da entidade se dá como se estivesse dirigindo a Microsoft. Ou seja, para cada dólar investido espera-se um determinado resultado.
Assim, percebe-se que a busca pela qualidade do retorno do investimento social é o grande diferencial desse modelo. Segundo a economista Martha Hiromoto, especialista no tema, essa forma de empreendedorismo possibilita oferecer mais robustez às organizações financiadas, melhorando consequentemente a qualidade do serviço que prestam à sociedade. “Isso acontece porque o capital doado se junta a um pacote de gestão, que varia do simples aconselhamento estratégico e seleção de funcionários, e interfere até na estrutura da instituição”, explica ela.
Mas, segundo Martha, para que o modelo obtenha sucesso e atinja sua missão é fundamental que o investidor assuma uma postura participativa e engajada no processo. “No venture philanthropy, mais do que realizar o repasse financeiro, o empreendedor social tem que participar do fortalecimento da instituição financiada, tornando-a capaz de gerar elevadas taxas de retorno social e eventualmente ganhos financeiros sobre o investimento realizado”, afirma ela.
Os números não mentem
Segundo pesquisa da Community Wealth Ventures Inc, atualmente há cerca de 42 fundos de venture philantrophy nos Estados Unidos. Na Europa, onde o conceito começou a ser praticado anos mais tarde, por volta de 2005, a expressividade é menor: são aproximadamente 26 fundos, dos quais 17 têm atuação internacional.
Outro estudo realizado pela European Venture Philantrophy Association revela que tal modelo de investimento já representa 2% do PIB americano e 1% do europeu. Na avaliação da entidade, tais percentagens significam dezenas de bilhões de dólares investidos de forma estratégica nas organizações sem fins lucrativos, refletindo a expressividade financeira dessa modalidade de investimento social.
Para Katherine Fulton, presidente do Monitor Institute (www.monitorinstitute.com) e especialista em mudanças sociais, o venture philantrophy representa uma mudança de paradigma para a filantropia. “Estamos transformando nossos atos em uma nova forma de pensar. A filantropia está se reorganizando aos nossos olhos, assim como diversas áreas do setor social e dos negócios, que nos convidam a olhar de forma diferente para antigas premissas”, complementa.
Na onda dos novos modelos de investimentos sociais está, por exemplo, a inglesa Impetus Trust. Criada em 2003 por um dos mais conceituados executivos de venture capital do País, Stephen Dawson, da ECI Ventures, e ganhadora do Charity Awards em 2008, o Oscar das organizações filantrópicas inglesas, a organização aplica os conceitos do mercado financeiro no mundo da filantropia. Ao todo, ela presta assistência para 12 organizações não governamentais (ONGs) que lidam com o combate à pobreza e com cursos técnicos e de educação, dando prioridade às iniciativas que levam as pessoas a um estado de independência econômica. A utilização das práticas de venture philantrophy tem aumentado em 53% ao ano a capacidade de impacto social dessas instituições.
De acordo com a economista Daniela Barone Soares, também especialista no assunto, o trabalho de traduzir o modelo do setor privado para o terceiro setor é a chave do sucesso estratégico no investimento. Segundo ela, a essência do modelo de venture philantrophy é a geração de valor social com qualidade atestada pelo mercado. “Em private equity, atividade financeira em que instituições investem em empresas que não estão na bolsa de valores com o objetivo de alavancar seu desenvolvimento, o investimento é feito no negócio como um todo, porque a intenção é criar valor para vender a empresa pelo triplo do que foi comprada. No terceiro setor também prezamos por investir em todas as frentes de uma ONG”, explica Daniela.
No Brail, um exemplo é o Fundo Ninho, da organização Nonprofit Enterprise and Self-sustainability Team (NESsT), responsável por oferecer aporte financeiro e de capacitação para a criação de atividades empresariais sociais. O Ninho está há pouco mais de dois anos no País ajudando organizações na busca de autofinanciamento, diminuindo a dependência por doações. Sua carteira conta hoje com sete ONGs recebedoras de auxílio. A experiência é aplicada em outros nove países da Europa Oriental e das Américas Central e do Sul.
Segundo Mariana Nicolleti, porta-voz da NESsT no Brasil, o programa proposto pelo Fundo Ninho contempla algumas etapas. Na primeira delas, a de planejamento, a instituição auxilia a ONG desde a estruturação de sua ideia até a elaboração do plano de negócio. A partir daí, levando em conta as propostas que realmente se tornam viáveis de serem executadas, inicia-se a fase de incubação, que dura cerca de três anos.
Neste estágio, as organizações passam a receber doações com verbas vindas do Fundo, além de serem assessoradas por executivos com altos cargos, que doam parte de seu tempo e expertise para essas instituições. “Esperamos que depois desse estágio elas possam estar em outro patamar para caminhar sozinhas”, revela Mariana. “Prevemos uma estratégia de expansão depois desses três anos, em que auxiliamos as ONGs a se multiplicarem geograficamente ou levarem suas práticas como exemplo para outras instituições”, explica.
O fundo acaba atuando como uma ponte que conecta o terceiro setor com o universo empresarial. “Eles falam línguas diferentes e se conhecem pouco. Fazemos o meio de campo para traduzir essas linguagens e facilitar a integração. Acreditamos que ambos os setores devem compreender que são complementares e precisam estar olhando para o mesmo lugar, afinal a sociedade e o planeta são os mesmos para todos nós”, compara Mariana. Outro desafio é o estabelecimento de indicadores que apontem o impacto da missão. “Quando os investidores olham para as organizações em que vão investir, precisam enxergar mais que custos e retorno financeiro. Eles querem saber se a causa está sendo fortalecida”, enfatiza.
Para o ano que vem, a NESsT pretende replicar seu modelo de atuação na Europa, onde há outra frente de negócio: o de investimentos sociais com retorno financeiro para o investidor. A diferença desse tipo de empreendedorismo em relação ao tradicional é que nesse caso o lucro recebido é reinvestido em causas sociais. “Queremos implementar práticas de crédito com juros reduzidos, captar novos investidores e trabalhar com fundos específicos em 2012”, revela Mariana.
O que muda com o venture philantrophy
• A moeda de troca: quem antes doava dinheiro agora investe tempo e conhecimento a favor do bom funcionamento da organização e impacto social positivo a ser gerado.
• O tempo: o investimento passa a ser programado e dura o necessário para a ONG se fortalecer e tornar-se sustentável.
• O resultado: o terceiro setor ganha a eficiência do setor privado e independência de uma única fonte de investimento.
Veja quais as principais Diferenças entre o Investimento Social Privado Tradicional e o Venture Philanthropy no quadro abaixo
Investimento Social Privado | Venture Philanthropy | |
Recursos | Investimento por projeto | Investimento por projeto e institucional |
Retorno | Projetos de 1 ano | Retorno esperado varia entre 3 e 7 anos |
Monitoramento | À distância | Direto |
Retorno | Social | Social e eventualmente financeiro |
Avaliação | Processo e resultado de projeto | Processo, resultado e impacto |
Engajamento | Baixo | Alto |
Fonte: Nara Bianconi especial para o SESI, via Mercado Ético.