O associado e fundador da ABCR, Marcelo Estraviz, que também foi Presidente da instituição nas duas últimas gestões, publicou em sua página na internet um texto em que debate o cenário atual de captação de recursos no país, as perspectivas para o futuro e aprofunda a discussão sobre a cultura da doação e a cultura de pedir: no Brasil, realmente doamos pouco? Confira abaixo, na íntegra, o artigo, e faça sua reflexão.
“Analisar a experiência internacional, principalmente a americana, é um exercício que nos causa inveja. Não só pela performance mas principalmente pelos dados de todos os tipos e as séries históricas. Falar de desafios e oportunidades sem dados é quase que um exercício de futurologia. Tentarei ser mais útil que aquelas cartomantes que aparecem na TV todo fim de ano para explicar quem vai morrer e quem vai casar.
Comecemos pelos dados reais. Pela primeira vez na história, a classe média brasileira é maioria. Mais de 52% da população pertence à classe C e isso é uma novidade tão grande que todos estão tentando entender esse segmento: indústrias fazendo pesquisas para descobrir produtos que se encaixam nesse perfil. Publicitários querendo atingir a classe média, até novela da Globo abertamente dirigida a esse público. Para nós, focados em acompanhar a filantropia e a cultura de doação no país, é uma excelente notícia. Em qualquer lugar do mundo se sabe que o doador padrão é a classe média e a classe pobre. Mais gente da classe C significa mais doações. A questão é saber se as organizações estão preparadas para atingir esse público, conquistá-lo e fidelizá-lo.
As organizações mais conhecidas que atuam com captação com indivíduos estão se reinventando, criando novos pacotes de doação, de valores mais baixos e de linguagem mais acessível. Uma organização focada em meio ambiente, que tem 40 mil doadores regulares, acaba de perceber que a maioria de seus doadores é da classe C e sempre acharam que a maioria fosse das classes A e B. Suas solicitações variam de 30 a 100 reais mês. E isso significa que estão “forçando a barra” com seus doadores da classe C, que tem um ticket médio (valor de doação mensal) na faixa de 17 reais. Ou seja, O número de 40 mil doadores é muito mais em função do alto valor que se está pedindo a cada um do que a um número baixo de doadores.
Pelo Brasil afora há um número considerável de organizações que ainda utilizam o sistema de boleto e outras ainda que vão mensalmente com seu recibo pelo motoboy, para retirar 10 reais em dinheiro ou em cheque. Tais organizações tem um sistema de telemarketing interno e um vínculo local com a população. Os motoboys são convidados a tomar café e comer um pedaço de bolo de fubá. É o arcaico com o futurístico. Puro Brasil.
Mas tudo está em transformação constante, é claro. Essa mesma organização que citei, que fica no interior de Minas Gerais, acaba de abrir uma filial na capital Belo Horizonte. Estamos juntos construindo sua estratégia de chegada e já fizemos vários testes. Uma das teorias que queríamos averiguar era se o telemarketing funcionaria com a mesma força que tem no interior de Minas. A resposta é simples: não. As metrópoles tem um outro espírito filantrópico. A desconfiança entra no lugar do bolo de fubá.
Um teste: Fizemos uma experiência onde doadores regulares do interior de Minas indicariam nomes de amigos ou familiares de Belo Horizonte. Resultado interessantíssimo. Conseguimos 130 novos doadores a cada mil indicados. Já no caso de contatos frios de Belo Horizonte, buscados na lista telefônica, o resultado era de 4 a cada mil. Isso prova que uma coisa continua igual e sempre será assim: vale muito a pena contar com os atuais doadores para conseguirmos novos doadores.
Mas fica a dúvida: Porque a maioria das organizações não faz isso? Eu tenho ministrado cursos nos últimos 12 anos sobre algumas ténicas e táticas de captação e é interessante como parece uma demanda infinita. As pessoas se surpreendem com as coisas simples que deveriam fazer e não fazem. Em geral comentam como tudo o que eu disse era óbvio, mas pela primeira vez perceberam isso.
Ainda pretendo insistir um pouco mais de tempo neste artigo sobre indivíduos porque quando falarmos sobre empresas e governos, verão que a lógica não difere muito. Queria destacar outro dado curioso. As organizações finalmente já passaram a criar seus departamentos de captação. Isso é um dado não comprovado científicamente, mas posso afirmar isso em função das mais de 8 mil pessoas que capacitei nestes 12 anos onde pelo menos metade tinha ou ia criar em breve um departamento de captação ou algo similar. O dado curioso não é o departamento. Isso é até lógico. O curioso é que as pessoas buscam o mapa da mina, o truque, o segredo de encontrar o salvador da pátria, a empresa que vai salvá-las ou o edital que ninguem conhece. O curioso é que essas organizações, que já sobreviveram esses anos todos aos trancos e barrancos, apagando incêndios, conseguindo recursos variados, diversificados e sempre envolvendo parceiros, amigos, familiares, essas organizações estõa ávidas por parar de fazer isso (lidar com outras pessoas) para encontrar o noivo ideal. Essas organizações, ingenuamente, procuram o golpe do baú, querem o marido rico!
No fundo, a grande maioria das organizações que conheci (e foram milhares), não gostam muito de envolver outras pessoas na causa. Elas prefeririam que alguém as financiasse para que continuassem trabalhando no que gostam de fazer, seja cuidar de crianças ou pesquisar sobre o mico leão. Milhares dessas organizações vão morrer nos próximos anos. Ainda bem. Pois é necessário que sobrevivam aquelas que defendem uma causa e que envolvem mais pessoas na defesa dessa causa. Há que se pensar no engajamento das pessoas, seja doando, seja voluntariando-se, seja criando uma ONG.
As ONGs locais conseguem perceber isso com mais facilidade, pois dependem direramente dos recursos das pessoas da comunidade. A rifa, o bingo, o leilão, o boleto, são os mecanismos mais diretos de participação e financiamento destas organizações.
As ONGs que estão em grandes metrópoles tem um desafio maior pela frente. Primeiro porque estiveram acostumadas com recursos maiores de empresas ou da cooperação internacional. Buscam hoje alternativas mas estão mais habituadas a serem financiadas por projetos e isso eliminou a percepção de que necessitam de defensores de causas. Individuos. Sempre eles. Se percebessem isso, poderiam inclusive buscar aliados entre empresários e gestores governamentais. Mas ficaram muito amarrados ao modelo de financiamento por projetos e estão mais propensos a cavar editais do que fidelizar aliados.
Mas o Brasil é um continente virgem. Há um potencial gigantesco de recursos. Estamos longe ainda de estarmos competindo por recursos. Anualmente recursos governamentais disponibilizados por programas acabam não sendo utilizados por falta de bons projetos. Recursos internacionais se vão, mas outros vem pela primeira vez, e haverá muito mais nesses anos de grandes eventos.
As maiores empresas estão no seu limite de doações mas há um percurso discreto ocorrendo. Na última década as maiores empresas repassaram recursos para seus institutos e fundações empresariais para realização de projetos próprios. Hoje em dia, pouco a pouco, estão percebendo a vantagem de repassar recursos para organizações especialistas. Ainda no quesito empresas, há uma infinidade das que estão crescendo em faturamento e que nunca estiveram no radar. Além das mil maiores e sempre assediadas, há umas 20 ou 30 mil espalhadas pelo Brasil com faturamentos crescentes, gestores acessíveis e presença local.
Por fim, queria falar sobre a cultura de doação. Duas grandes linhas de pensamento atuam simultaneamente no Brasil quando falamos sobre doações. Tais linhas descrevem dois mundos contraditórios e em geral as pessoas defendem uma ou outra tese. Uma delas diz que o brasileiro é um povo cordial, amigo, solidário e cooperativo. Eu concordo com essa tese. Outra linha de pensamento diz que no Brasil não há uma cultura de doação, que somos desconfiados, que não há incentivos fiscais, que estamos muito abaixo da média mundial em doações individuais. Eu também concordo com essa tese.
O que proponho aqui é que não nos contentemos com escolher um lado, a resposta certa. Mas sim que possamos explorar melhor a situação brasileira real, peculiar e específica, para a partir dela, ampliar a cultura da doação em nosso país. A primeira coisa que devemos ter claro é que falta ampliar a cultura do pedir, antes mesmo da cultura da doação. Essa tese é o que pretendo descrever a seguir.
Se você fizer uma busca nas imagens do Google com a palavra doação, encontrará nas primeiras telas tudo menos dinheiro. Verá imagens sobre doação de sangue, alimentos e algum desenho demonstrando pessoas unidas ao redor do globo ou algo assim. Se você fizer essa mesma busca com a palavra em inglês (donation), você verá principalmente cofres em formato de porquinho, mãos estendidas (algumas com moedas), notas de dinheiro e uma ou outra imagem envolvendo corações. Pois bem, essa pesquisa nada científica mas muito simbólica mostra o que é para o brasileiro a ideia de doar. Nós nos envolvemos radicalmente quando há alguma tragédia. Doamos toneladas de alimentos, água, cobertores, agasalhos. E fazemos isso por um principal motivo: existe o pedido. Toda a mídia, em todos os progamas, comenta, dá telefones, lugares que receberão as doações. Ou seja, somos solidários, mas isso não basta, recebemos um chamado para sê-lo. Há o pedido.
Outra demonstração forte é aquele formato televisivo anual para doações. Temos o Criança Esperança na Globo, o Teleton no SBT, a RedeTV agora tem também seu evento anual. São 24 horas ou mais de solicitação constante, com estrutura para recebimentos em dinheiro, com processos facilitados através da conta de telefone, com artistas falando diretamente, pedindo claramente. E milhões são arrecadados porque há o pedido.
As operações de doações via telemarketing com bolo de fubá pelo interior do Brasil são outra demonstração forte do poder da solicitação. Podemos observar um correto equilíbrio entre o doar e o solicitar. Centenas de organizações no Brasil vivem das doações solicitadas por telefone e tenho certeza que todas elas não discutem se o brasileiro é solidário ou não. Seus números atestam o óbvio: claro que é. Mas isso se confirma por algo: Há o pedido.
Por outro lado, um estudo da McKinsey feito em 2008 nos trouxe muitos elementos interessantes sobre a filantropia no Brasil. Entre vários dados, pudemos observar como estamos de fato muito abaixo da média mundial, e inclusive da média latino americana. O que é importante percebermos é que isso não pode nos levar a concluir que o brasileiro não doa, mas sim que o brasileiro (as ONGs) não pedem qualitativamente.
Quando eu ainda era Presidente da ABCR (Associação Brasileira de Captadores de Recursos) decidimos em nosso planejamento estratégico 2010-2020 que nosso foco para os próximos 10 anos seria na ampliação da cultura da doação, e para isso acreditamos que a chave está na capacitação e qualificação de uma maior cultura do pedir. Olhar para os dados das pesquisas e amargar a realidade de que doamos pouco é no mínimo simplesmente paralisante. O que nos move é entender que os dados nos trazem métricas comparativas e que nos cabe ampliar a cultura da doação, qualificando o pedir, fortalecendo as causas, buscando aliados, transformando a doação num ato prazeroso, como já é quando nos solicitam.
Eu sonho com um futuro onde eu terei que escolher qual jantar beneficente eu vou no fim de semana. Quando escolherei quais as ONGs quero apoiar, de um leque de uma dezena de solicitações que me chegaram em casa. Sonho com o dia que ultrapassaremos as médias mundiais, porque isso não é só possível, isso ocorrerá em menos de 10 anos. Basta qualificarmos o pedir. E por isso peço a você que pense no assunto. A cultura da doação no Brasil vai aumentar. E você vai contribuir com isso. Doando para suas causas.”