O Investimento Social Privado, quando executado de maneira estratégica, ou seja, alinhado às diretrizes de responsabilidade social e sustentabilidade e às estratégias de negócio da empresa, integrando a perspectiva interna à perspectiva externa do negócio, e gerando valor para a empresa e sociedade, torna a empresa sujeito do processo de transformação social do país. Mas no que isto é diferente da filantropia?
Melissa Porto Pimentel*, especial para o SESI – Serviço Social da Indústria — via Mercado Ético
Filantropia e história
A etimologia da palavra filantropia deriva suas raízes do grego philos e anthropos, que se traduzem respectivamente como ‘amor’ e ‘ser humano’. Filantropia significa então ‘amor à humanidade’, ou, de forma mais ampla, o amor ao gênero humano e a tudo o que lhe diz respeito. A filantropia expressa-se por meio da ajuda ao próximo sem que haja interesse em uma troca ou retribuição, e é realizada por indivíduos ou por grupos de indivíduos organizados. O termo foi criado pelo imperador romano Flavio Claudio Juliano, responsável por restaurar o paganismo como a religião dos romanos, que o utilizou para equiparação ao termo ‘caridade’, uma das virtudes da nova religião cristã.
No Brasil, a tradição da filantropia inicia-se a partir das atividades da Igreja Católica, nos primórdios do Brasil colônia. Mais precisamente, a partir da fundação da Santa Casa de Misericórdia de Santos em 1543. A atuação das Igrejas na assistência às comunidades mais necessitadas dura todo o período colonial, até o início do século XIX. A partir do século XX, outras religiões passam também a atuar no campo da caridade com fins filantrópicos, e observa-se o crescimento do número de organizações religiosas, confessionais e assistenciais oferecendo seus serviços à população excluída das políticas básicas de educação e saúde.
Na década de 30, como resultado do crescimento do país, da industrialização e da urbanização, observa-se o aumento da complexidade dos problemas sociais e o surgimento de diversas entidades da sociedade civil. Em 1935, foi promulgada a lei de declaração de utilidade pública, que regulamenta a colaboração do Estado com as instituições filantrópicas. Nas duas décadas subsequentes observa-se o florescimento das organizações partidárias criadas no berço do sindicalismo. Embora já bastante organizada, a sociedade permanece, nas décadas de 70 e 80, tradicionalmente hierarquizada e bastante desigual, levando ao surgimento dos movimentos sociais, que reivindicam direitos sociais para as minorias e fazem oposição às práticas autoritárias do regime desse período.
Com o início do processo de redemocratização no Brasil, a partir da Constituição de 1988, constata-se nas últimas décadas um aumento significativo da quantidade e da variedade de associações que surgem, em um primeiro momento, em virtude da atuação ineficiente do Estado, em especial na área social. As organizações não governamentais (ONGs) passam a ser alternativas para o atendimento à crescente demanda por serviços sociais, requisitados por uma quantidade expressiva da população menos favorecida, que o Estado e os agentes econômicos não têm interesse ou não são capazes de atender.
A partir da década de 90, o tema da responsabilidade social começa a sensibilizar as empresas no Brasil, movimento que se iniciou na França na década de 70, pioneira na criação de uma lei que obriga empresas a publicar as ações sociais em seus balanços anuais. O aumento da participação da iniciativa privada nas políticas sociais do governo e a pressão exercida por entidades não governamentais e institutos de pesquisa, aliados às enormes carências, desigualdades e à incapacidade do Estado em atender às demandas sociais, conferem maior relevância ao tema da responsabilidade social.
Como resultado deste processo, o que se observa é o nascimento de organizações empenhadas em mobilizar o setor privado em torno do assunto, como o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE), criado em 1995, e o Instituto Ethos, instituído em 1998. O florescimento de um novo setor econômico – o chamado Terceiro Setor – e a consolidação dos conceitos de “Responsabilidade Social Empresarial” e “Investimento Social Privado” ganharam então nova conjuntura.
Investimento Social Privado e Responsabilidade Social Corporativa
O Investimento Social Privado pode ser definido como “repasse voluntário e de recursos privados de forma planejada, monitorada e sistemática para projetos sociais de interesse público”, segundo o GIFE – Grupo de Institutos Fundações e Empresas – associação brasileira que congrega mais de 130 associados que, juntos, representam mais de 30% de todo o investimento social privado feito no país.
Em seu 5º Censo, pesquisa feita com seus associados, o GIFE apresenta dados interessantes sobre o setor no Brasil. São mais de R$ 2 bilhões anuais aplicados em diferentes áreas temáticas, beneficiando diretamente cerca de 24 milhões de pessoas. A área prioritária escolhida por estas instituições é a educação, que recebe investimentos de 82% dos associados. Cultura e artes, formação para o trabalho e meio ambiente são os temas seguintes na lista de preferências. Merece destaque o fato do investimento em ações ligadas ao tema do meio ambiente ter crescido 26% de 2007 para 2009, em linha com a crescente importância da agenda climática para o planeta. Outro dado surpreendente, e que revela a consolidação do investimento social privado no Brasil, é a redução de apenas 6% dos recursos alocados durante o período da crise financeira, iniciada em outubro de 2008 e observada nos dados de 2009 da pesquisa.
Atualmente, a grande maioria dos investidores sociais privados são fundações, associações empresariais e empresas, e não pessoas físicas, fundações familiares ou comunitárias. Isso significa dizer que, de forma geral, estes investimentos são administrados tendo como pano de fundo a lógica empresarial. Assim, parece natural que os investimentos sejam executados por meio do desenvolvimento de programa próprio, ou seja, sejam focados em determinados temas definidos pela empresa em um horizonte mais curto de tempo.
A responsabilidade social empresarial é, segundo o Ethos, “uma forma de gestão que se define pela relação ética e transparente da empresa com todos os públicos com os quais ela se relaciona e pelo estabelecimento de metas empresariais que impulsionem o desenvolvimento sustentável da sociedade, preservando recursos ambientais e culturais para as gerações futuras, respeitando a diversidade e promovendo a redução das desigualdades sociais”. Portanto, os conceitos de Investimento Social Privado e Responsabilidade Social Corporativa (ou Empresarial) relacionam-se, mas não são equivalentes. O Investimento Social Privado realizado pelas empresas beneficia prioritariamente a comunidade, entendida em seu sentido mais amplo, e faz parte da responsabilidade social da empresa, como ilustra a figura abaixo.
Fonte: RSE – Por que o guarda-chuva ficou pequeno? Aliança Grupo Capoava
A distinção entre estes dois conceitos começa a ficar mais clara a partir da reflexão das duas últimas décadas sobre o papel social das empresas. Historicamente, o entendimento da função social de uma empresa se resumia à geração de empregos, pagamento de impostos e a realização do lucro para os acionistas. E o Estado permanecia responsável pela garantia da oferta de serviços sociais básicos para a população em geral. Em linhas gerais, o resultado prático da aplicação desse modelo foi uma grande concentração de riqueza e a exclusão da maioria da população do acesso aos serviços sociais básicos, o que ainda observamos em diversos países.
O aumento vertiginoso da pobreza, aliado aos processos de redemocratização de diversos países, intensifica a pressão social exercida pela sociedade junto ao setor privado. O resultado é a ampliação do alcance da visão das empresas sobre sua responsabilidade, que passam a ir além das expectativas de acionistas, funcionários, fornecedores e clientes. As empresas começam então a perceber a necessidade de geração de valor para todos os stakeholders, e a serem questionadas na sua missão e objetivos, em seus processos produtivos e nos impactos que geram no meio ambiente e na sociedade etc.
Em anos recentes, a responsabilidade das empresas passa a ser o centro das discussões das principais economias do mundo, associado ao conceito de desenvolvimento sustentável: um modelo de progresso econômico e social que permitirá que todos os seres humanos atinjam boas condições de vida — sem comprometer a capacidade do ser humano de se manter continuamente no planeta.
Em resposta a esse anseio mundial, surgem códigos, princípios e normas que regulamentam essas práticas. Alguns exemplos são o Pacto Global da ONU, o Sustainability Index do Dow Jones – DJSI, e as normas SA8000 (focada prioritariamente nas relações de trabalho) e AA1000 (com foco no diálogo com partes interessadas), que desafiam as corporações a atingir um patamar mais alto de desempenho. No Brasil, a Bovespa lançou em 2005 o Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE), resultado da análise de uma carteira de ações de empresas reconhecidamente comprometidas com a sustentabilidade. Atualmente, o GRI – Global Reporting Initiative, que oferece as mais modernas diretrizes de como divulgar ações de responsabilidade social e sustentabilidade, pode também ser entendido como uma ferramenta de gestão para empresas comprometidas com o tema.
Investimento Social Estratégico
Neste contexto, observa-se uma mudança de posicionamento das áreas de Investimento Social Privado dentro das empresas. Estas áreas passam a ser uma unidade de inteligência social, ou uma área profissionalizada da empresa que busca parcerias e estratégias diversificadas de atuação para que haja relacionamento estratégico entre a empresa e as comunidades com as quais convive .
Segundo Bruch e Walter (2005), a forma estratégica de fazer o investimento social é alinhando a expertise da empresa às expectativas dos públicos com os quais ela se relaciona. Segundo os autores, existem quatro tipos de abordagem para a filantropia, que partem da combinação da importância dada às demandas externas (orientação para o mercado) e ao foco principal do negócio (orientação para as competências).
Fonte: Bruch & Walter MITSloan 2005
A “filantropia periférica” é aquela praticada por empresas que dão prioridade às necessidades dos seus públicos de relacionamento, ligados principalmente ao mercado em que atuam, sem relacionar o investimento social ao seu core business. A “filantropia restrita” é aquela que usa as mesmas habilidades e competências da empresa para objetivos sociais, mas sem levar em consideração as demandas do público atendido. A “filantropia dispersa” é praticada quando as doações feitas pelas empresas ocorrem sem foco ou direcionamento específico e, nesse caso, ninguém na empresa sabe muito bem quais os critérios de escolha de projetos. Já a “filantropia estratégica” é aquela que integra a perspectiva interna à perspectiva externa. As competências da empresa são alinhadas às demandas e necessidades das comunidades, usando as habilidades da empresa para benefício público, em iniciativas realmente transformadoras da realidade.
Porter e Kramer, em seus artigos publicados na Harvard Business Review em 2002 e 2006, defendem a ideia de que a obrigação moral, a licença para operar e a reputação – argumentos comumente usados para justificar o investimento em projetos sociais – são embasados no pressuposto de que há antagonismo natural entre comunidades e empresas. Na verdade, não há como um negócio ir bem em uma sociedade que vai mal. Se isto é certo, uma empresa deve integrar a perspectiva social nas ferramentas que utiliza para identificar seus fatores críticos de sucesso e para desenhar suas estratégias. Neste contexto, o investimento social privado só gera valor quando apresenta tanto benefícios sociais quanto econômicos. A busca pela maximização do valor deste tipo de investimento está na medida em que a ação não é pura filantropia ou puro negócio, como ilustra a figura abaixo:
Em seu mais recente artigo publicado no tema (HBR Janeiro de 2011), Porter e Kramer propõem a criação de valor compartilhado como a ferramenta para a reinvenção do capitalismo. O que, a meu ver, não parece nada fácil. O conceito, que já aparece no artigo publicado em 2006, reconhece que as necessidades da sociedade, e não só as necessidades econômicas, definem os mercados. Mais ainda, considera que os impactos negativos na sociedade geram custos internos para as empresas. Neste sentido, as empresas deveriam deixar de tratar questões sociais como temas periféricos e passariam a levar em consideração a perspectiva da criação de valor (um conceito já bastante conhecido do mundo empresarial). Ou seja, contabilizar benefícios menos custos também das variantes da dimensão social do negócio. Atuando desta forma, a empresa pode continuar gerando lucro, e muito. Mas neste caso um lucro diferente. A obtenção do lucro envolvendo um propósito social representa a forma mais evoluída de capitalismo, que cria um ciclo positivo de prosperidade para a empresa e a comunidade. Para tanto, é preciso repensar produtos, mercados, processos e a produtividade ao longo de toda a cadeia de valor.
Conclusão
O investimento social privado estratégico é uma ferramenta por meio da qual a empresa pode começar a se aproximar dos temas sociais críticos para o seu negócio, desde que seja feito de forma alinhada às diretrizes de sustentabilidade e às estratégias de negócio da empresa. No longo prazo, na medida em que as dimensões sociais de um negócio passem a ser levadas em consideração nas análises de riscos e oportunidades e na conta da geração de valor para o negócio, o investimento social privado deixará de existir da forma como o conhecemos. Deixará de existir como uma atividade paralela ao negócio, que tem implicações tangenciais ao core business da empresa, e passará a ser considerada como imprescindível para a definição de estratégias. Deixará de ser uma instituição separada e fará parte do coração da empresa.
Ao acompanhar a evolução dos conceitos aqui apresentados, podemos perceber que o conceito de filantropia em muito se distancia do que vemos hoje como investimento social privado estratégico. Um longo caminho foi percorrido; conceitos e práticas puderam se estabelecer, fortalecendo a atuação e o papel da sociedade civil neste contexto. A certa altura, quando as empresas tiveram seu papel e seus impactos questionados, a resposta imediata foi a consolidação da responsabilidade social corporativa. Mesmo assim, ainda hoje, os temas tratados sob esta égide são considerados acessórios, ligados ao compliance ou à “licença para operar”. Talvez por isso, a credibilidade do setor privado no que se refere ao gerenciamento de seus impactos sociais e ambientais ainda deixa muito a desejar, mesmo com toda a movimentação em torno da responsabilidade social e da sustentabilidade que observamos hoje em dia.
Mais recentemente, com o alinhamento das iniciativas de institutos e fundações empresariais com o core business das empresas e com o consequente surgimento do conceito de Investimento Social Privado Estratégico, o que se configura como cenário de curto prazo parece ser um maior equilíbrio entre geração de benefícios sociais tanto quanto econômicos de uma atividade com fins de lucro. Não acredito que veremos tão cedo o desaparecimento das organizações ou áreas responsáveis pelo investimento social das empresas. Ao contrário, o fortalecimento do conceito de Investimento Social Privado Estratégico, a consolidação de práticas e a demonstração de resultados deste modelo de atuação parece-me ser o único caminho possível para a tão almejada reinvenção do capitalismo através da criação de valor compartilhado.
Fontes
– Aliança Grupo Capoava: Responsabilidade Social Empresarial: Por que o guarda-chuva ficou pequeno? (2010)
– Bruch, H. & Walter, F. – The Keys to Rethinking Corporate Philanthropy – MITSloan Management Review (2005)
– ETHOS – www.ethos.org.br
– Giannecchini, L. e Woods, M. – Os Principais Erros do Investimento Social – IDIS (2007)
– GIFE – www.gife.org.br
– Kisil, M. – Investimento Social também tem risco e taxa de retorno – Valor Econômico (2002)
– Porter, M. & Kramer, M. – Strategy & Society: The link between Competitive Advantage and Corporate Social Responsibility – Harvard Business Review (2006)
– Porter, M. & Kramer, M. – The Competitive Advantage of Corporate Philanthropy – Harvard Business Review (2002)
– Porter, M. & Kramer, M. – Creating Shared Value – How to Reinvent Capitalism – and Unleash a Wave of Innovation and Growth – Harvard Business Review (2011)
* Melissa Porto Pimentel é especialista em Investimento Social Privado, com 17 anos de sólida carreira na área sem fins lucrativos. É formada em Biologia pela USP, com pós-graduação em Administração de Empresas pela FGV e mestrado em Gestão de Organizações Não Governamentais pela London School of Economics/UK. Iniciou sua carreira na área trabalhando no CENPEC – Centro de Estudos e Pesquisas em Educação Cultura e Ação comunitária, onde esteve por quase 5 anos. Após o mestrado, foi convidada a implantar a área de Investimento Social Privado do Grupo Camargo Corrêa e, em 2001, assumiu a Superintendência do Instituto Camargo Corrêa. Em 2008, teve como desafio formalizar e incrementar as atividades da RedEAmérica no Brasil, onde atuou como Secretária Executiva até o início de 2009. Atualmente, é consultora na DBM, especializada em Terceiro Setor, e sócia da Gestão Origami, uma nova consultoria de gestão de negócios com um vetor de atuação com base no conceito da sustentabilidade.