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Doações por testamento: primeiros passos para incluir sua organização no legado do doador

No Brasil, ainda são raras as organizações que recebem doações por testamento. E mais raras ainda as que falam abertamente sobre isso com seus apoiadores. Durante sua masterclass no Festival ABCR 2025, a consultora canadense Ligia Peña, uma das maiores especialistas no tema, falou sobre como captar recursos por testamento — o chamado legado — pode se tornar uma estratégia de financiamento de longo prazo para organizações da sociedade civil, inclusive pequenas. A primeira lição passada por ela é a de que legado não é sobre morte, é sobre continuidade e compromisso com a transformação social.

O começo é na comunicação

Um dos equívocos mais comuns, segundo Ligia, é acreditar que só é possível captar legado quando se tem uma estrutura jurídica robusta, uma equipe dedicada ou um programa inteiro já planejado. Nada disso é necessário no início. “Captação de legado começa pela comunicação. Começa no vínculo com o doador, na confiança, na conversa”, disse.

Sua sugestão para quem quer começar é simples: sem grandes campanhas, sem material caro, sem site novo. O primeiro passo é o que ela chama de “espalhar pó de legado”. Incluir pequenas menções ao tema em canais que já existem: uma frase no rodapé do e-mail institucional, um parágrafo em uma newsletter, um destaque no final de um post. Sempre com uma linguagem acessível e cuidadosa. Nada de falar sobre morte. Você pode dizer, por exemplo: Depois de cuidar de quem você ama, você consideraria incluir esta organização no seu testamento?

O uso da expressão “quem você ama” no lugar de “família” também não é à toa. Ligia lembra que nem todo mundo tem boa relação com parentes, e que a comunicação precisa ser empática e inclusiva. Além disso, recomenda-se evitar expressões como “depois que você morrer” ou “após o falecimento”. Em vez disso, fale sobre futuro, continuidade e contribuição duradoura. “Doar por testamento é um presente para as próximas gerações”, afirma.

Emoção, pertencimento e prova social

Por trás da decisão de incluir uma organização no testamento está sempre uma carga emocional profunda. Seja por gratidão, por identidade com a causa ou por sentir-se parte de algo maior. Ligia destacou que, em muitos casos, os doadores nem se veem como benfeitores, mas como pessoas que querem devolver à sociedade algo que receberam. Ela citou exemplos marcantes de doações feitas por familiares de pacientes atendidos em centros de cuidados paliativos ou hospitais oncológicos. “Não é uma dívida financeira. É uma dívida emocional. A organização cuidou da minha mãe, do meu filho. Eu quero que outras pessoas tenham acesso ao mesmo cuidado”. 

Esse tipo de vínculo, porém, só se estabelece quando há confiança. E confiança não se pede, se constrói. Um dos caminhos mais eficazes, segundo Ligia, é mostrar que outras pessoas já estão fazendo o mesmo. Compartilhar histórias de quem deixou a organização no testamento, mesmo que ainda sejam poucas, ajuda a normalizar o gesto. “É a chamada prova social. Quando o doador vê que outros estão fazendo, ele entende que aquilo é comum, legítimo”.

Não espere o momento certo

Segundo Ligia, não existe o momento certo, nem o conteúdo perfeito. “Comece com o que você tem. Um site simples, um mailing pequeno, uma rede fiel. O importante é começar”. Ela mostrou como pequenas ações podem desencadear um processo duradouro. Em um exemplo, uma organização ambiental criou um “livro da memória” com os principais marcos de sua trajetória. Ao visitar doadores, o captador folheava o material e perguntava: “Onde você estava quando essa campanha aconteceu?” Isso ativava a memória autobiográfica do doador e, com ela, o desejo de fazer parte daquela história.

Esse mecanismo foi estudado, inclusive, em pesquisas com ressonância magnética. Ao ler conteúdos sobre legados, os doadores ativam justamente a área do cérebro ligada às memórias afetivas e à construção da própria identidade.

A diferença entre pedir e convidar

Outro ponto importante da fala de Ligia foi a forma como a abordagem é feita. Em vez de pedir que o doador deixe uma herança, o ideal é convidá-lo a considerar essa possibilidade. A diferença pode parecer sutil, mas tem grande efeito na percepção de liberdade e autonomia. “O doador precisa sentir que é uma escolha dele, não uma pressão da organização”, explicou. “É isso que gera confiança, e confiança é o coração da captação de legado”.

Ela ainda sugeriu que todas as organizações incluam, desde o início, a orientação para que o doador converse com seus entes queridos sobre sua decisão. Isso ajuda a evitar disputas e mostra transparência. “Quando a organização declara publicamente que respeita a vontade da família e não quer tirar nada de ninguém, isso protege sua imagem e previne problemas futuros”.

Como engajar seus primeiros doadores

Mesmo organizações com poucos recursos podem mapear possíveis legatários em sua base. A dica é observar pessoas que doam há muito tempo, que mantêm contato frequente ou que demonstram forte conexão com a causa. Uma ação simples sugerida por Ligia é enviar uma pesquisa com perguntas sobre o vínculo da pessoa com a organização, se ela já ouviu falar em doações por testamento e se gostaria de receber mais informações. Muitas vezes, quem responde “não” hoje pode mudar de ideia no futuro. “O importante é manter o tema vivo na comunicação. Um dia, aquela sementinha germina”. 

Ligia apresentou um exemplo real, utilizado por uma fundação hospitalar no Canadá, que virou uma poderosa ferramenta tanto para identificar pessoas interessadas quanto para educar o público sobre a possibilidade de doação por testamento. A pesquisa começa de forma ampla, com perguntas sobre a motivação para doar, quais organizações a pessoa apoia e qual é a importância relativa da sua instituição entre as causas apoiadas. Só depois aparecem perguntas mais específicas, como: “Você gostaria de receber mais informações sobre como deixar um legado?”. Ligia também recomenda substituir perguntas diretas sobre idade por perguntas geracionais, como: “Em qual dessas faixas etárias você nasceu?”. Isso preserva a privacidade e ainda permite uma segmentação do público.

Reconhecimento: mais do que nome na parede

Quando alguém confirma que incluiu a organização em seu testamento, esse gesto precisa ser reconhecido. Mas, de novo, não se trata de gastar com placas ou eventos grandiosos. Ligia mostrou exemplos criativos e sensíveis: um livro de receitas feito com funcionários da organização, um presente simbólico conectado à missão da instituição, um bilhete escrito à mão com agradecimento. “É sobre dar significado, não visibilidade”, resumiu.

Ela também compartilhou uma experiência pessoal. Ao incluir uma organização indígena canadense em seu testamento, recebeu uma carta junto a um feixe de ervas sagradas, usado em rituais de boas energias. “Eu me emocionei. Aquilo dizia: você faz parte da nossa história. É isso que o legado representa”.

Para onde estamos indo?

A captação de legado é, por essência, uma estratégia de longo prazo. Os frutos não aparecem em seis meses e nem em um ou dois anos. Por isso, é fundamental que a organização tenha clareza sobre sua visão de futuro. “Você sabe onde sua instituição quer estar em 10 ou 15 anos?”, provocou Ligia. “É para esse lugar que os legados vão levar vocês”.

Mais do que isso, é preciso cultivar essa conversa no dia a dia com ética, escuta e planejamento. “É um campo onde não se colhe hoje, mas se planta para garantir que as causas que defendemos sobrevivam a nós. E isso, para quem trabalha com impacto social, é um gesto profundo de coerência”. A floresta dos legados, como ela mesma descreve, se planta com sementes pequenas. Mas cada uma delas pode sustentar, no futuro, a permanência de uma causa.

Legado Solidário

No Brasil, uma das iniciativas mais estruturadas para estimular doações em testamento é o Legado Solidário, criado pelo Colégio Notarial do Brasil – Seção São Paulo (CNB/SP). A campanha reúne tabeliães e organizações da sociedade civil com o objetivo de incentivar a população a considerar causas sociais ao redigir seus testamentos. Por meio do site oficial da campanha, o público encontra informações acessíveis sobre como funciona o testamento público, quais causas podem ser apoiadas e quais organizações fazem parte da iniciativa. A ação busca quebrar o tabu sobre o tema, mostrar que qualquer pessoa com bens pode doar, e fortalecer a cultura do legado como parte da cidadania e do engajamento social.

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