Avatares, desafios, missões, mudança de fases, competições, pontuações, rankings e premiações são comuns em jogos e podem parecer distantes do Terceiro Setor. Porém, é possível usar esses elementos para inovar na captação e engajar ainda mais doadores. A gamificação nada mais é do que utilizar ferramentas do universo de jogos em outros contextos para aumentar a motivação dos indivíduos de maneira dinâmica e divertida.
“A gamificação é bastante utilizada na captação sem as pessoas saberem que estão utilizando isso. Há várias ferramentas usadas nas campanhas de crowdfunding, por exemplo, que têm elementos de gamificação, só que ninguém deu um nome para isso”, observa Bianca Porto, fundadora da Grifa, negócio de impacto social que apoia instituições sem fins lucrativos.
Segundo Bianca, a gamificação tem se popularizado entre as instituições brasileiras, mas existem muitos aspectos inexplorados na área: “O que vejo que a gente não faz muito ainda é criar toda a experiência de jogo da campanha, pensar nela como um todo como gamificação. Estamos utilizando alguns elementos, mas sem dar toda a roupagem de fazer uma gincana ou um desafio. Uma campanha muito legal que usou gamificação no Brasil, no começo da pandemia, foi o desafio 10×10 que o Edgard Gouveia lançou na questão de alimentação. Tinha toda uma gincana pensada nesse contexto”.
O Desafio 10×10 ao qual Bianca se refere foi uma gincana online desenvolvida por Edgard Gouveia, presidente da Livelab, laboratório de inovação social que desenvolve e aplica tecnologias e estratégias de jogos colaborativos para promover impactos positivos. Criada para combater a fome durante a pandemia, o objetivo da gincana era engajar a juventude na arrecadação de doações para compras de cestas básicas. Para isso, a iniciativa desafiou 10 milhões de jovens a alimentar 10 milhões de famílias no prazo de um mês.
Havia três maneiras de participar do desafio: fazer uma doação direta, montar um time temático (sobre música, esportes, games, culinária, natureza, entre outros) ou ingressar em um time. A proposta para os jovens que desejavam interagir mais com o jogo era que cada um fizesse uma doação e conseguisse pelo menos 10 pessoas da sua rede para o time. Os novos integrantes, por sua vez, também deveriam contribuir com a campanha. Ao desafiarem suas redes (seguidores, amigos e familiares), houve uma disputa para ver quem conseguia mais doações.
Celebridades, influenciadores, gamers, organizações e empresas também divulgaram o desafio em suas redes para impulsioná-lo e o resultado foi exibido em tempo real na plataforma. Embora a campanha tenha usado vários elementos de jogos, é possível elaborar iniciativas mais simples com um ou dois elementos da gamificação, mas é preciso verificar qual o perfil da instituição porque a estratégia nem sempre é indicada. Revisitar campanhas anteriores e conversar com os doadores para descobrir suas preferências são ações que podem servir de termômetro para optar ou não pela gamificação.
“Acho que tem algumas características importantes para ter uma gamificação. A primeira delas é ser uma organização que está acostumada ou quer entrar nessa questão de coisas mais dinâmicas e ativas que envolvam esse engajamento e mobilização de todos os presentes. Há organizações com gestões mais tradicionais que não vão conseguir engajar os colaboradores a participar de um jogo ou desafio. Eu diria que ter esse perfil de mobilização é algo importante, normalmente a gente vê esse perfil em organizações com voluntários mais jovens, mas não é uma regra”, explica Bianca.
Após analisar o perfil da instituição, o primeiro passo é pesquisar sobre o tema. No Brasil, há muitos conteúdos sobre gamificação na educação, mas quem lê em inglês consegue ter acesso a vários cases que usam a gamificação na captação de recursos ou na própria gestão. Bianca também sugere que as organizações pesquisem sobre comunidade, que é algo intrínseco a esse processo. “O mais legal da gamificação é que ela não tem uma fórmula pronta de como tem que funcionar, é muito adaptável, tem muita coisa que pode ser explorada e ainda não foi, principalmente quando a gente fala sobre Terceiro Setor e captação de recursos. É algo novo, tem muito espaço para crescer e conseguir ter mais ferramentas”, acrescenta.
Depois de estudar gamificação e comunidade, é preciso pensar em quatro pontos principais: objetivos, regras, desafios e prêmios. Os objetivos são a definição das metas da captação de recursos, as regras se referem ao regulamento da campanha e exigem tempo para o planejamento e a comunicação, que também deve ser feita internamente. “Reúna os colaboradores da organização, explique a campanha e forneça material a eles para que estejam preparados. Nós não começamos a jogar um jogo sem conhecer as regras, o mesmo vale para campanhas”, afirma Bianca.
Em seguida, é o momento de pensar nos desafios e missões que os participantes terão que cumprir e a premiação que irão receber. Um dos principais erros que as organizações podem cometer é elaborar etapas difíceis e com muitos passos, isso se torna um desestímulo à participação do público. Ter um contador de captação de recursos que mostre o quão próxima a campanha está de atingir a meta também ajuda, pois há mais possibilidade de obter apoios.
Segundo Bianca, as premiações podem ser físicas ou virtuais (como selos e certificados) mas é bom que estejam de acordo com o orçamento da organização e que aproximem as pessoas do seu trabalho. Independentemente da premiação concedida, é importante que a instituição seja clara desde o início da campanha e explique como será o reconhecimento e quem irá recebê-lo.
A identidade visual é outro elemento que requer atenção. Jogos visualmente atraentes atraem um público maior, por isso é importante dedicar tempo para esse quesito. Outra questão relevante é o uso do storytelling, ou seja, como será a narrativa sobre o objetivo da campanha e seu funcionamento. Mesmo se as instituições propuserem uma disputa entre os participantes, a gamificação na captação de recursos é uma coopetição: uma competição colaborativa na qual todo mundo ganha, pois ajudará uma causa socioambiental. Quanto mais essa característica for reforçada pelo storytelling, melhor.
Um dos principais cuidados é não deixar as pessoas esquecerem o motivo do jogo, como aconteceu com o famoso desafio do balde de gelo, no qual o público participava da brincadeira sem saber que era uma campanha de arrecadação de recursos. Mesmo assim, a arrecadação da campanha em 2014 foi de mais de US$ 100 milhões. “O primeiro desafio que temos é não deixar a gamificação superar nossa causa, temos que resgatar as pessoas com storytelling”, observa Bianca.
Caso a proposta das instituições seja uma competição entre os participantes, a inserção de pontuação e ranking incentiva a busca de melhores resultados. “Na Grifa, temos um mecanismo em que as pessoas podem se dividir em times para ver quem capta mais recursos. Esse tipo de campanha anima as pessoas. Quando espalhamos isso, conseguimos ter 30, 50 pessoas doando. Quando uma pessoa pede para outra da sua rede, é muito mais provável que a doação aconteça do que se o pedido vier de um desconhecido”.
Uma das campanhas elaboradas pela Grifa foi para o Dojô Padma, um espaço de aprendizado de karatê para mulheres e pessoas não binárias. O intuito era conseguir recursos para o aluguel e a reforma de um espaço maior possibilitando que o Dojô acolhesse mais pessoas. A campanha propunha diferentes faixas de doação e cada uma recompensava os colaboradores de uma forma.
Outro aspecto que chama atenção foi que cada faixa tinha o nome de uma faixa do karatê. Assim, era possível começar na faixa branca e doar a partir de R$ 30,00. Quem optasse por essa categoria recebia um agradecimento e o nome da parede do dojô. A partir de R$50,00, o colaborador estava na faixa amarela e ganhava um pacote com papel de parede para computador e celular, uma playlist para animar seus treinos e um pacote exclusivo de figurinhas para o WhatsApp.
Se o doador contribuísse com uma quantia igual ou superior a R$ 75,00, estava na faixa laranja e teria o nome escrito na parede do espaço, uma aula de defesa pessoal e um bilhete para uma rifa com prêmios. Com isso, a campanha convidava as pessoas a doarem mais, progredirem de faixa e receberem mais premiações.
A faixa preta, última do karatê, se referia a doações a partir de R$ 2000,00, nas quais os colaboradores recebiam todas as recompensas das outras faixas e o dojô se comprometia a realizar um workshop de defesa pessoal para até 30 mulheres em situação de vulnerabilidade em uma região periférica de Goiânia escolhida pelo doador e cuja turma seria batizada com seu nome.
As dicas de Bianca Porto foram compartilhadas durante o Festival ABCR 2023
Introduzir técnicas de jogos nas campanhas da sua OSC é uma ótima maneira de inovar na captação de recursos. Aproveite e aprenda mais dicas sobre inovação.
Texto publicado pela Captamos, editoria da ABCR de conteúdos aprofundados sobre mobilização de recursos para causas