No terceiro dia do III Seminário Internacional MROSC, o painel “Filantropia Transformadora” reuniu especialistas e representantes do setor para debater os desafios e caminhos para democratizar o acesso a recursos privados para organizações da sociedade civil (OSCs). Erika Sanchez, diretora executiva do Instituto ACP, abriu o painel destacando a importância de ir além das discussões sobre legislação e abordando a relação entre recursos públicos e privados no fortalecimento da sociedade civil.
“Quando falamos de filantropia transformadora, precisamos entender como tornamos mais democrática a destinação dos recursos privados para as OSCs. Para isso, é essencial que ampliemos o debate para além da legislação e consideremos o diálogo entre recursos públicos e privados”, afirmou Erika. Ela detalhou que essa discussão deve incluir três “universos” de financiamento:
- Filantropia institucionalizada: Composta por institutos, fundações e empresas que destinam recursos às OSCs, essa modalidade é fundamental para viabilizar o trabalho dessas organizações.
- Doações de Pessoas Físicas: Incentivo à cultura de doação entre indivíduos.
- Recursos compartilhados entre setor público e privado: Muitos recursos oriundos de incentivos fiscais, como os das leis de incentivo, têm origem pública, mas sua destinação é decidida por atores privados. “Esses recursos são geridos de forma quase compartilhada entre o Estado e a iniciativa privada, e é importante que a filantropia seja discutida nesse contexto também”, destacou Erika.
A diretora executiva do Instituto ACP também sublinhou a necessidade de colaboração entre diferentes setores, enfatizando que as arquiteturas de colaboração entre o setor privado, o Estado e as OSCs são fundamentais para o desenvolvimento sustentável das organizações, que deve ser uma prioridade.
Filantropia estratégica e o desafio das desigualdades
Participando virtualmente, Carola Matarazzo, diretora executiva do Movimento Bem Maior, trouxe uma análise sobre as desigualdades no Brasil e o papel da filantropia em enfrentá-las. “No Brasil, 1% da população detém mais de 63% da riqueza. Este dado é um reflexo do desafio monumental que enfrentamos na luta pela redução das desigualdades e pela inclusão social”, afirmou.
Carola falou sobre o conceito de filantropia estratégica, que, segundo ela, deve ir além de apenas suprir necessidades imediatas. “A filantropia estratégica olha para uma visão de médio prazo, com a motivação de mexer nas estruturas dos problemas e não apenas nas suas consequências”. Outro ponto de sua fala foi a necessidade de a filantropia apoiar o desenvolvimento de lideranças comunitárias e territoriais. “A força do setor está além da capacidade de executar programas sociais; está na capacidade de amplificar interesses comuns, mediar, coordenar e trazer uma agenda que possa ser discutida amplamente”, argumentou Carola.
Filantropia comunitária e justiça socioambiental
Jonathas Azevedo, assessor de programas da Rede Comuá, ressaltou a filantropia comunitária e a capacidade das comunidades de identificar as soluções necessárias e gerenciar os recursos recebidos. O assessor também destacou a importância da filantropia em promover a justiça social. “Esta é uma filantropia que prioriza a doação para grupos historicamente minorizados. Ela aborda questões de justiça e equidade, e endereça a herança colonial que ainda perpassa as práticas filantrópicas do setor”. Ele mencionou que, em muitos casos, essas práticas incluem uma lógica de poder que perpetua a exclusão e a marginalização de certas comunidades, e que a filantropia deve combater ativamente essa dinâmica.
O assessor também enfatizou que a filantropia comunitária que a Rede Comuá promove já é, em si, uma transformação em andamento. “Quando falamos de doação baseada na confiança, estamos falando de um princípio básico na relação que nossos membros têm com seus parceiros na sociedade civil. Eles não são apenas repassadores de recursos; constroem soluções junto com essas comunidades”, afirmou.
Filantropia baseada na confiança
Allyne Andrade, diretora do Fundo Brasil de Direitos Humanos, iniciou sua fala explicando que o modelo de financiamento do Fundo Brasil é baseado na confiança e na flexibilidade. “Nós não impomos agendas para os movimentos que apoiamos. As organizações enviam suas propostas, e nós oferecemos recursos flexíveis, permitindo que elas usem esses recursos da maneira que considerem mais eficaz”, afirmou. Desde 2020, o Fundo Brasil financia exclusivamente o desenvolvimento institucional das organizações, sem exigir a execução de projetos específicos. “Nós entendemos que as organizações sabem o que é mais importante para elas, e apoiamos suas decisões.”
De acordo com Allyne, o processo de seleção das propostas é feito por comitês externos formados por pessoas do campo de atuação. “O critério é que as pessoas do comitê não estejam concorrendo ao edital. Se é um edital para comunidades indígenas, o comitê é composto por indígenas; se é para quilombolas, o comitê é quilombola”, explicou Aline. O objetivo é democratizar o processo de seleção e garantir que as decisões sejam tomadas por quem realmente entende as necessidades das comunidades.
Transformação real
Cássio França, secretário-geral do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE) falou sobre a importância de elevar o grau de exigência sobre o que significa “transformar” na filantropia. Ele sublinhou que a maior parte das iniciativas filantrópicas, de fato, realiza transformações em alguma escala, mas a questão crítica é se essas transformações são profundas e estruturais o suficiente para enfrentar as desigualdades históricas do Brasil.
“A maior parte da filantropia faz seus projetos e eles transformam, de fato, alguma coisa. Mas a questão é qual o nosso grau de exigência. O GIFE tem colocado um grau de exigência muito alto em relação à possibilidade que a filantropia tem para transformar esse país”, afirmou Cássio. Ele também abordou o potencial financeiro da filantropia brasileira, destacando que os associados do GIFE movimentam cerca de 5 bilhões de reais por ano. No entanto, Cássio comparou essa cifra com os números da filantropia nos Estados Unidos, onde a filantropia corporativa movimenta 20 bilhões de dólares anualmente. “Nosso objetivo não é necessariamente alcançar esses números, mas entender que temos um potencial muito maior para contribuir com a transformação do país do que estamos exercendo atualmente”, observou.
Para Cássio, a filantropia brasileira deve ir além dos projetos sociais bem-feitos e se engajar em um “novo pacto” para o país, que envolva a sociedade civil, o setor privado e o Estado em um esforço conjunto para reduzir as desigualdades. “A filantropia brasileira tem todas as condições de ser uma peça importante nesse novo pacto para o país. Se as famílias ricas e as grandes corporações decidirem que não precisamos mais optar pela desigualdade, podemos realmente mover o ponteiro e criar uma transformação estrutural”, argumentou.
“Não há transformação nesse país sem considerar a equidade racial e de gênero nas organizações. Isso é estrutural, e enquanto não tivermos equidade nos principais tomadores de decisão, estaremos limitados em nossa capacidade de transformar”, finalizou Cássio.
Concentração de poder
Márcio Black, diretor de Advocacy e Conhecimento no Instituto Beja, focou na questão da concentração de poder dentro da filantropia e seus impactos na capacidade de transformação social. “Nós sempre falamos sobre as mesmas coisas, mas nunca discutimos o que é fundamental: o poder. A concentração de poder político, financeiro e social é o que realmente precisa ser enfrentado”.
Márcio descreveu a filantropia como um campo que precisa urgentemente discutir e enfrentar a concentração de poder. “Podemos contratar gerentes e coordenadores negros, passar aquele bom verniz, mas se não discutirmos a transferência real de poder, tudo será inócuo. Não adianta falarmos de transformação se não estivermos dispostos a abrir mão do poder e garantir que pessoas negras, indígenas, quilombolas e mulheres estejam em posições de tomada de decisão”, enfatizou.
Ele também refletiu sobre o papel da filantropia em garantir a sobrevivência das comunidades marginalizadas, destacando que a verdadeira transformação começa por elas. “A filantropia que transforma mesmo é aquela que, antes de qualquer coisa, garante que as pessoas fiquem vivas. Estamos falando de um país que está cometendo um genocídio em relação às comunidades negras, quilombolas e indígenas. Se garantirmos que essa galera fique viva, já teremos uma transformação significativa para os próximos 20 anos”, concluiu Márcio, reforçando a necessidade de uma abordagem mais estrutural na filantropia.
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Texto publicado pela Captamos, editoria da ABCR de conteúdos aprofundados sobre mobilização de recursos para causas