No Festival ABCR 2024, realizado nos dias 01 e 02 de julho, Carol Farias, líder do Dia de Doar, subiu ao palco para falar sobre um tema de extrema relevância: “O potencial da articulação territorial para ampliar a captação de recursos”. A plenária contou com a presença de Dhay Borges, do Doa Salvador, Marciane Campos, do DOA Tocantins, e Marcelle Decothé, da Iniciativa Pipa, e trouxe à tona a importância de fortalecer a cultura de doação e ampliar o acesso aos recursos para comunidades periféricas no Brasil.
Desafios da captação de recursos nas periferias
Marcelle Decothé, que é cofundadora da Iniciativa Pipa, educadora popular e pesquisadora de gênero, raça e violência, com uma carreira dedicada ao fortalecimento das favelas e periferias, iniciou a discussão apresentando o cenário das dificuldades enfrentadas pelas periferias brasileiras na captação de recursos. “As pessoas historicamente marginalizadas precisam acessar recursos diretamente, sem intermediários. Em 2019, fundamos a Iniciativa Pipa com o objetivo de democratizar o acesso ao investimento social privado e fomentar a mudança social a partir das periferias”, explicou.
Marcelle compartilhou dados coletados pela Pipa. “Realizamos uma pesquisa com 607 organizações de favelas e periferias no Brasil. Descobrimos que 31% dessas organizações têm um orçamento anual de até 5 mil reais. Além disso, 68% são lideradas por mulheres e mais de 70% por pessoas negras. Esses números refletem a realidade de que quem promove mudança e impacto social nas periferias são, em sua maioria, mulheres negras, que enfrentam grandes desafios financeiros”, destacou.
Falando sobre a criação da Pipa, Marcelle lembrou que foi a primeira vez que ativistas de periferia se organizaram e construíram uma organização para debater a infraestrutura da filantropia brasileira. “Nosso primeiro desafio foi que não somos filhos e filhas de grandes fundações. A partir da compreensão da dificuldade de acessar recursos, entendemos que essa é uma realidade. E se eu estou falando do Rio de Janeiro, que é um centro urbano do Sudeste, você imagina o quando pode ser desafiante em outras regiões do Brasil. Então, a partir dessa percepção, a gente criou a Iniciativa PIPA e sentamos com grandes associações para criar nosso planejamento estratégico e a nossa teoria de mudança, que é democratizar o acesso ao recurso para o Brasil para que mais pessoas negras, mulheres, LGBTs, para que territórios onde historicamente há ausência de investimento consigam acessar recursos”.

Estratégias de resistência
Dhay Borges compartilhou a experiência do Doa Salvador e os desafios enfrentados na mobilização de recursos. “Nosso coletivo Resistência Preta atua em 124 dos 170 bairros de Salvador, enfrentando contextos de violência histórica, mas também de grande resistência. Em 2022, realizamos uma campanha comunitária que mobilizou mais de 50 iniciativas, mas a criminalização e a falta de oportunidades dificultaram nosso avanço. Tivemos que retirar recursos do próprio bolso para atender 300 pessoas em situação de rua no centro de Salvador”, relatou.
Apesar das dificuldades, Dhay Borges ressaltou a importância de persistir e buscar alternativas. “Levamos três anos para estar aqui. Precisamos construir redes, ampliar nossa capacidade de articulação e conscientizar a população sobre a importância da doação. É uma tarefa árdua, mas não desistimos”, afirmou.
Dhay Borges também destacou a importância da colaboração. “Quando dizemos que carregamos essas bandeiras e identidades, estamos falando de um trabalho muito árduo. Precisamos nos unir e construir estratégias de sobrevivência. O coletivo Resistência Preta acredita que a periferia é central, e é essa centralidade que nos motiva a continuar lutando e buscando apoio para nossas iniciativas”, disse.
O sucesso do DOA Tocantins
Marciane Campos compartilhou a experiência do DOA Tocantins e os desafios enfrentados. “Quando falamos com a Carol sobre o Dia de Doar, imaginamos um evento grandioso. Eu pensei que, com nossos processos e influência, poderíamos envolver muitas organizações e fazer algo significativo. No entanto, não foi fácil. Eu ia até os gestores, tentava explicar, mas o interesse era mínimo. Até mesmo as próprias organizações não mostravam interesse. Era o primeiro Dia de Doar, então muitas pessoas não entendiam do que se tratava. Tivemos que adiar o evento várias vezes até decidirmos reduzir o escopo. Foi então que percebi que precisava mudar de estratégia. Aprendi que a estratégia precisa ser intencional, e isso foi crucial”.
A nova estratégia foi criar o site Connect Project, para apresentar projetos sociais. Enviamos esses projetos para organizações, gestores públicos e empresas. “Convidamos as organizações mais influentes em Palmas, duas grandes empresas e outras que já tínhamos encaminhado para discutir juntos: organizações sociais, empresas e gestão pública. Foi uma troca rica de experiências. Cada um ali falou sobre suas dificuldades. Percebemos que esse diálogo é essencial para entendermos o que os gestores, principalmente os prefeitos, precisam. Com um diagnóstico claro, podemos criar grandes oportunidades. Precisamos entender o que devemos propor como política pública, porque essa é a discussão que precisamos provocar. Naquele encontro, tivemos várias oportunidades de ouvir as organizações. Elas falaram sobre as dificuldades em acessar recursos, como os fundos destinados a crianças, adolescentes e idosos. As empresas reclamaram da falta de transparência. E os gestores públicos desconheciam muitos desses desafios”, disse Marciane.
O resultado foi impressionante. “Nesse evento, apresentamos esses projetos no site para as empresas. Em apenas duas horas e meia de discussão, conseguimos captar 220 mil reais. Cada organização apresentou seu projeto e uma empresa presente contribuiu com pelo menos 10 mil reais para cada uma delas. Tive duas opções: desistir do Dia de Doar no Tocantins ou persistir. Decidi fazer acontecer de verdade. E deu tão certo que agora temos o apoio do governo estadual”, explicou Marciane.
Oportunidades e colaboração
Carol Farias ressaltou a importância de enfrentar os desafios estruturais que limitam a captação de recursos nas periferias. “Estamos falando de uma questão de acesso, não de esforço. Precisamos abrir portas e criar oportunidades para quem está nas periferias. Se Dhay Borges tivesse alguém abrindo portas para ele, muito provavelmente o resultado seria diferente”, afirmou.
Marcelle Decothé concordou e destacou a importância da inclusão. “Precisamos trazer as periferias para a mesa de decisões. Se quisermos ser estratégicos, devemos incluir as pessoas que estão na linha de frente das mudanças sociais. As periferias têm respostas, e precisamos ouvir essas vozes para construir uma cultura de doação sólida e inclusiva”, disse.
Carol Farias concluiu a plenária reforçando a importância da colaboração. “Não existe concorrência no terceiro setor. Quanto mais nos mobilizarmos para trabalhar juntos e usar nossos recursos para fortalecer uns aos outros, maior será o impacto. Doar não é assistência, é estratégia e investimento no desenvolvimento institucional das organizações que atuam como especialistas provocando uma mudança social”.
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Texto publicado pela Captamos, editoria da ABCR de conteúdos aprofundados sobre mobilização de recursos para causas.