Durante o Festival ABCR, foi lançada uma carta de esclarecimento abordando a ética e o compliance em patrocínios e doações realizadas por meio de leis de incentivo fiscal. Assinado pelo diretor executivo da ABCR, Fernando Nogueira, o documento alerta sobre práticas ilegais que envolvem vantagem financeira indevida, ressaltando a necessidade de empresas patrocinadoras e doadoras cumprirem rigorosamente as normas para evitar riscos financeiros e reputacionais.
Essas práticas geram preocupações no Terceiro Setor, prejudicando diretamente organizações da sociedade civil (OSCs) e o setor como um todo. O uso indevido de rubricas de captação de recursos para remunerar serviços prestados aos patrocinadores compromete a atuação ética e até a sustentabilidade das iniciativas apoiadas.
“Infelizmente, essa prática veio crescendo no mercado nos últimos anos. Agências que deveriam prestar serviços ao patrocinador OU a instituição, misturam essas duas formas e acabam oferecendo ao patrocinador serviços de busca ativa e seleção de projetos por valores muito baixos, ou mesmo sem cobrança alguma, alegando que podem ser remuneradas pelo proponente do projeto, com recursos do projeto. Mas não podem. E embora a lei seja clara, já identificamos cerca de 40 agências que, pontual ou frequentemente, agem dessa forma” afirma Suellen Moreira, que além de Conselheira da ABCR, já viveu na pele a situação como Diretora da Orquestra Ouro Preto e como sócia da Sociat Consultoria.
A maior parte dos mecanismos incentivados permite a remuneração pelo serviço de captação de recursos dentro do projeto, que pode ser realizado por uma empresa especializada ou até mesmo pela própria organização. O problema se dá quando as rubricas de captação, que deveriam ser utilizadas exclusivamente para cobrir os custos de serviços de mobilização de recursos contratados pelos proponentes dos projetos incentivados, são indevidamente direcionadas para remunerar serviços prestados em benefício dos patrocinadores.
A remuneração do prestador de serviço por meio dessa rubrica pode ser solicitada de forma indevida através de cláusulas inseridas em contratos ou termos de seleção, em que a empresa patrocinadora, ao invés de arcar diretamente com os custos de intermediação da empresa ou agência que ela escolheu trabalhar, transfere essa responsabilidade para as OSCs, utilizando recursos que deveriam ser destinados à execução dos projetos, e obtendo uma vantagem financeira para além do benefício fiscal. Geralmente, acontece de duas formas:
Em ambos os casos, fica evidente o conflito de interesse nessa seleção de projetos e a vantagem indevida ao incentivador, que está se beneficiando de um serviço em seu favor, pago com recursos públicos de um projeto incentivado. Um grande risco reputacional por algo que pode ser facilmente evitado.
Impactos para as OSCs e para o Terceiro Setor
Essa prática coloca as OSCs e demais proponentes em uma posição delicada. Necessitados da doação ou patrocínio pela sua própria sobrevivência, se veem pressionados a pagar por serviços que não contrataram para um fornecedor que não escolheram, utilizando recursos públicos que deveriam ser aplicados na execução dos projetos. Além de comprometer a finalidade dos incentivos fiscais, o aceite da proposta em si, representa uma ilegalidade.
Rachel Gadelha, diretora presidenta do Instituto Dragão do Mar (IDM) e vice-presidente do Conselho de Administração da Associação Brasileira das Organizações Sociais de Cultura (Abraosc), reforça a importância da observância das leis. “O processo de captação de recursos e execução de projetos via leis de incentivo é fundamental para o cumprimento do propósito e da razão de existência de organizações do terceiro setor. A observação da legislação e das regras de compliance dá segurança jurídica e institucional a esse processo. O cumprimento das regras pelos proponentes, captadores e patrocinadores reforça a idoneidade das leis de incentivo e fortalece a percepção que a sociedade tem do papel e da reputação dos atores envolvidos. A transparência e responsabilidade na execução e captação são fundamentais, afinal, trata-se de recurso público”.
Cabe destacar que o trabalho das consultorias que realizam processos de seleção de projetos para os patrocinadores é lícito e, muitas vezes, essencial para concretizar as doações e patrocínios, tendo lugar certo nesse mercado. No entanto, esse serviço, que é prestado para a empresa, deve ser pago pela empresa, e não com recursos dos projetos incentivados.
“Se faz necessário ter uma corresponsabilidade com o investimento na sociedade. As empresas jamais podem exigir pedágio ao proponente, ou seja, trazer uma consultoria terceira para intermediar a relação de contratação e exigir do proponente que a negociação ocorra via intermédio desta consultoria, com pagamento pelo proponente. Isso, para mim, traz conflito de interesses. A empresa deve pagar essa consultoria com recurso direto e não condicionar aos projetos usar suas rubricas já alocadas para financiar esse serviço de terceirização. Para mim é um exemplo clássico do uso indevido do recurso público, sendo utilizado em benefício próprio”, destacou Adriana Barbosa, diretora-executiva Pretahub e Feira Preta.
O Decreto Nº 11.453/2023, que regulamenta os mecanismos de fomento ao sistema de financiamento à cultura, é claro ao vedar o uso de rubricas de captação de recursos para o pagamento de serviços de consultoria, assessoria técnica ou avaliação de projetos prestados diretamente aos patrocinadores. Outras normativas também trazem o conceito da vantagem financeira como indevida e ilegal. Qualquer desvio dessas normativas pode resultar em sérias consequências, tanto para as OSCs quanto para as empresas patrocinadoras.
Por isso, é essencial que OSCs, profissionais de captação de recursos e empresas patrocinadoras atuem de forma conjunta para combater essas irregularidades. Caso se deparem com o uso indevido de rubricas de captação de recursos, é importante que denunciem nos canais adequados dos respectivos Ministérios ou nas ouvidorias das próprias empresas.
Práticas indevidas na Lei Rouanet podem ser denunciadas pelo e-mail ouvidoriaminc@cultura.gov.br
Para reportar sobre as mesmas práticas na Lei Federal de Incentivo ao Esporte, você pode utilizar os canais do Fala.BR
Para os Fundos de Direito da Criança e Adolescente e do Idoso, você pode escrever para ouvidoria@mdh.gov.br
E no caso de empresas investidoras, procure o canal de ouvidoria no site.
A captação de recursos é um trabalho legítimo, lícito e essencial para a sustentabilidade do terceiro setor e de produtores culturais independentes também. O profissional escolhido pela instituição para a representar deve ser respeitado. As organizações proponentes, os investidores sociais, os captadores de recursos e diversos serviços de consultoria que podem ser prestados a todas as partes, incluindo os serviços de busca ativa e seleção de projetos para as empresas incentivadoras, fazem parte desse universo. Todos os atores devem estar atentos a manter as melhores práticas, combater as ilegalidades e assegurar um ambiente ético e legal. Faça sua parte!
Texto publicado pela Captamos, editoria da ABCR de conteúdos aprofundados sobre mobilização de recursos para causas